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Literatura

Não existe pecado ao sul do Equador

Equador, de Miguel Sousa Tavares, é um complexo romance sobre a vida colonial durante os últimos anos da monarquia portuguesa

Miguel Sousa Tavares fez uma extensa pesquisa sobre São Tomé e Príncipe do começo do século 20 para compor Equador | Bel Pedrosa/Divulgação
Miguel Sousa Tavares fez uma extensa pesquisa sobre São Tomé e Príncipe do começo do século 20 para compor Equador (Foto: Bel Pedrosa/Divulgação)
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Poucos autores foram tão bem-sucedidos em criar uma obra-prima no século 21 quanto o português Miguel Sousa Tavares. Seu livro Equador, que desde seu lançamento em 2003 já vendeu mais de 400 mil cópias e foi traduzido para dez idiomas, é um épico romance histórico reconhecido pelo público e pela crítica como um tratado sobre a fragilidade e a complexidade das relações políticas durante os últimos dias da monarquia portuguesa.

Fruto de uma extensa pesquisa histórica sobre a vida nas colônias de Portugal no começo do século 20 – três páginas de referências bibliográficas é algo notório para um romance ficcional, mesmo para uma ficção histórica – Equador tem como personagem principal Luis Bernardo Valença, um bon vivant, uma espécie de playboy da belle époque. Com 37 anos, Bernardo trabalha numa companhia lisboeta de navios herdada do pai, e não tem ambições maiores do que viver uma vida confortável entre um caso amoroso e outro. Mesmo assim, como a atividade intelectual é bem vista, arrisca uma opinião ou outra sobre a questão colonial nos periódicos vigentes.

Por essa vaidade é fisgado. Quando o decadente Rei D. Carlos o convida, justamente por sua defesa de uma colônia moderna e eficaz, a assumir o posto de governador das ilhas de São Tomé e Príncipe – as duas menores colônias de Portugal – Valença se vê numa sinuca de bico, mas enxerga a possibilidade de fazer a diferença no imbróglio em que a metrópole havia se metido com outros países europeus.

Em 29 de abril de 1975, a Lei da Abolição foi decretada para todos os territórios portugueses – um pouco antes da Lei Áurea brasileira, portanto. A suspeita de que ainda houvesse trabalho escravo nas duas ilhotas era motivo de preocupação para o governo central pois, além de indicar uma falta de soberania sobre suas possessões, corria-se o risco de ter os principais contratos da venda de cacau – principal produto das colônias depois da cana-de-açúcar – cancelados pelos principais compradores, entre eles a Inglaterra.

É para lá que o governo inglês envia também o cônsul David Jameson e sua esposa Ann. Com a missão de verificarem a validade da lei portuguesa, parece natural que os únicos cidadãos metropolitanos a habitar aquelas áridas paragens se tornassem amigos, ainda que rivais no âmbito político.

Essa é apenas uma das relações complexas de que Tavares trata em Equador. Luis Bernardo Valença chega às ilhas com um propósito muito claro e um método cartesiano para resolver as questões escravagistas, mas logo descobre que os limites que definem o que é trabalho escravo podem ser tão tênues quanto forçados para um lado ou para outro. Vivendo entre roceiros xucros e escravos arredios que, assim como ele, também estão ali por pura falta de opção, Valença cria a consciência de que tem uma batalha hercúlea para vencer, e depende do jogo de cintura político para não se indispor com metade da população santomense nem com o cônsul inglês.

Equador tem todos os elementos de um grande romance – o amor impossível, o chamado para a missão, o exílio e as disputas políticas. A grande diferença é a forma como esses elementos são tratados: a partir do ponto de vista colonial, há uma inversão do eixo narrativo do tradicional romance histórico português. O maniqueísmo também está fora: os vícios e as virtudes são qualidades morais de todos os personagens, e a equação das relações no romance deixam de ser lineares para se aproximarem ainda mais do emaranhado de emoções e atitudes da alma humana da vida real. Sem espaço para qualquer golpe de sorte ou azar, toda causa e consequência do romance é fruto das personalidades humanamente falhas que povoam as ilhotas. É só ao final do livro, portanto, que se entende porque o autor explica, na epígrafe, que a palavra "equador" é uma possível contração em português arcaico da expressão "é com a dor".

Serviço:

Equador, de Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letras, 540 págs., R$ 49,50. GGGG1/2

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