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Vultos afro-brasileiros

Negros/Gregos/Arcadianos/Brasileiros

Do escritor Machado de Assis ao geógrafo Milton Santos, grandes nomes da História do Brasil são descendentes de escravos, mas esse fato é pouco lembrado

Brasil, Belle Époque. A carruagem avança, pelas ruas do Rio de Janeiro, a caminho de uma das primeiras reuniões da Academia Brasileira de Letras. Em seu interior, o intelectual ajeita o monóculo e repassa o discurso que fará a seus pares. Elegantemente trajado e absolutamente tranquilo, observa a luz dos lampiões no calçamento, detectando, surpreso, a fagulha de inspiração para uma história. A arte, porém, deve ficar para depois – por agora, que venha a consagração!

Não é difícil imaginar o Brasil do fim do século 19 a partir de uma narrativa como a que abre este ensaio. O ambiente, o personagem e até a instituição mencionada, a Academia Brasileira de Letras (ABL), são rapidamente assimilados e devolvidos como representação pelo imaginário do homem médio. Esse processo, porém, costuma incluir uma caprichosa nota racial: para a maioria das pessoas, nosso intelectual brasileiro da virada do século provavelmente seria um homem branco. Isso, a despeito de nosso maior literato, Machado de Assis – fundador e primeiro presidente da ABL –, ser negro, e de termos muitos outros intelectuais e artistas afrodescendentes no período e em épocas anteriores e posteriores.

Figuras como Lima Barreto, André e Antônio Rebouças, Luís Gama, Cruz e Souza, José do Patrocínio, Theodoro Sampaio, Milton Santos, Alberto Guerreiro Ramos, José Mauricio Nunes Garcia e João do Rio – representantes negros ou mulatos de uma intelligentsia essencial à construção da identidade do país.

"Machado de Assis não é um negro, é um grego", disse Olavo Bilac do Bruxo do Cosme Velho. Em princípio, a frase comporta duas interpretações radicalmente opostas: pode ser lida como expressão abertamente racista, de negação da capacidade intelectual do negro, ou como manifestação da crença em que o talento se coloca além dos tons de pele, em uma espécie de "Arcádia" dos gênios. Em nosso contexto – relativo às representações dos intelectuais negros brasileiros do fim do Império e das décadas seguintes –, ela também simboliza a complexidade da discussão.

"Em relação à frase de Bilac, em especial no Brasil da passagem do século 19 para o século 20, as duas possibilidades de interpretação caminhavam juntas, mesmo sendo dicotômicas", diz o pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB-UFPR) e doutorando em História pela instituição, Hilton Costa. Isso porque, segundo ele, o contexto da época era ambíguo em relação ao lugar do negro na sociedade.

"Ao contrário do que poderíamos imaginar, muitos dos intelectuais da época eram tratados efetivamente como negros – ou seja, com preconceito – e seu talento pouco representava em relação à superação do problema. Depoimentos como os de Lima Barreto e Cruz e Souza (o primeiro, mulato; o segundo, negro) são evidentes nesse sentido. Ambos tiveram sua ascensão intelectual interrompida ou prejudicada pela condição racial."

Ao mesmo tempo, porém, outros personagens negros ou mulatos não enfrentavam tantas dificuldades. O melhor exemplo é o do próprio Machado de Assis, que foi amplamente reconhecido em vida, mesmo a despeito de sua origem racial e social (ele era filho de um operário). "Tudo dependia das redes de relações que cada indivíduo tecia, que podiam ou não atenuar sua condição racial", observa Hilton.

À brasileira

As redes apontadas por Hilton Costa colocam a escravidão e o racismo brasileiros em um nível diferente do vivido nos Estados Unidos e na África do Sul. Nesses países vigorava a "barreira de cor", forma institucional de segregação que tinha na separação material e na negação explícita de direitos seus princípios. "No Brasil, os mecanismos de segregação ou aceitação racial sempre foram, ao mesmo tempo, genéricos e individuais", diz Hilton.

Em outras palavras: dependendo das relações pessoais, da condição social e, em alguns casos, do parentesco, o negro ou mestiço poderia ser classificado como "negro", "mulato", "moreno" ou até "branco" – ainda que seu fenótipo apontasse para outra direção.

Em uma primeira leitura, essa leniência em relação à questão racial parece colocar o Brasil em uma situação mais "humana". Ledo engano. A aplicação da cordialidade apontada por Sérgio Buarque de Holanda e do "jeitinho brasileiro" às relações raciais no país apenas demonstra o grau de especialização do nosso racismo. "A Sociologia brasileira, em especial a produzida a partir dos anos 50, identificou nessa leniência o caráter mais insidioso da nossa escravidão. Que foi uma instituição total", observa Alexandro Trindade, doutor em Sociologia pela Unicamp (com uma tese sobre o engenheiro negro André Rebouças) e professor da Universidade Federal do Paraná.

Segundo Trindade, para compreender a configuração dos intelectuais negros brasileiros do período é preciso conhecer a estrutura da sociedade escravista brasileira. "Lembrando Florestan Fernandes, podemos afirmar que essa sociedade era uma mescla de estamentos e castas", explica. Ao mesmo tempo em que havia um corte racial profundo – uma demarcação clara entre a casta dos escravos e a dos homens livres –, os escravos podiam ocupar posições diferentes na sociedade.

"Na verdade, o Brasil comportou várias formas de escravidão. Uma coisa é a chamada 'escravidão do eito', da grande lavoura, outra coisa é a escravidão doméstica, a chamada 'escravidão de ganho'. Cada uma dessas formas, assim como a posição social do dono do escravo, poderia determinar o locus do indivíduo. Havia, portanto, uma espécie de 'mobilidade social' entre os escravos, que permitia posições diferenciadas nessa estrutura."

Essa possibilidade de ascensão social – percebida por Joaquim Nabuco como típica do "caráter elástico" de nossa escravidão – colaborava para que não se instalasse o clima necessário para grandes rebeliões de escravos. "Tivemos revoltas importantes, como a dos malês (negros muçulmanos) em Salvador no ano de 1835. Elas, porém, parecem não ter constituído um projeto político contra a escravidão", analisa Trindade.

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