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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

O menos português dos autores portugueses, Gonçalo M. Tavares, de 45 anos, pertence à linhagem de Julio Cortázar e Italo Calvino, como fica evidente em seu mais recente lançamento – “O torcicologologista, excelência” (Caminho, 2015). Do neologismo do título ao gosto por pontos de vista inusitados, Gonçalo revela que sua pátria é um estilo teorizante, em que o narrativo dá a vez a análises cínicas. Escritor da cidade pós-humana, ele a faz habitada por vozes e não por pessoas. E são vozes dispersas que compõem este volume de ficção, em textos sem gênero definido, entre o conto e o teatro, a novela e a instalação artística.

Não encontramos no livro personagens nomeados ou referências geográficas, o que sugere a concepção do contemporâneo como linguagem despaisada. Esta falta de uma identidade se estende ao gênero de seus livros, avessos às rotulações tradicionais. Isso determinou a recepção internacional de suas obras, que se adaptam às percepções múltiplas da modernidade móvel.

Se esta validade universal é o principal traço de “O torcicologologista, excelência”, a obra traz algumas particularidades. Destaco o mecanismo de linguagem. Na primeira parte, o autor explora uma estrutura clássica da filosofia, à maneira dos diálogos de Platão. Os temas das conversas não são de alta relevância filosófica, tratando de maneira humorística a própria limitação do pensar. Teremos em cada peça duas pessoas que se referem ao outro respeitosa e um tanto acintosamente como excelência. Isso dá aos debates um tom assembleístico, tal como em nossos parlamentos, em que a falsa respeitabilidade em momentos de embate instaura o riso. Gonçalo se apropria de um gênero consagrado para fazer um uso desviante dele.

Nestes diálogos pós-modernos, a compulsão para a interpretação resulta em um painel caricato, em que encontramos opiniões sobre tudo, mas sem seres que as sustentem. É como se o livro nos revelasse um grande ruído de enunciações que oblitera quem fala. Tais falações apresentam uma tendência para o vazio, esgotando-se em si próprias. Um dos narradores faz referência a um catálogo de “Pessoas Com Quem se Deve Falar Com Regularidade no Caso de se Querer Ficar a Cada Semana Mais Estúpido” (p. 238), o que pode ser entendido como metáfora das redes sociais. Gonçalo, assim, desmonta as armadilhas de um tempo tagarela e oco, ironizando-o.

Na segunda parte do livro, “Cidade”, o autor contabiliza pequenos fatos da vida de pessoas indistintas, que são apenas números que se confundem, reforçando uma visão do presente como ruínas largamente repetidas.

Fica assim evidente o projeto de não narrar a cidade, de não fundar uma réplica da urbe A ou B, porque já não há cidades, apenas a cidade, aglomerado de vozes fragmentadas e sobrepostas, sem corpos que as liguem a uma história. Em vez de recriar uma latitude, o autor escolheu representar pela alegoria da forma narrativa uma civilização reduzida ao murmúrio egótico.

Miguel Sanches Neto tem 35 livros publicados. O mais recente é o romance “A Segunda Pátria”, pela Intrínseca. Ele vive em Braga e escreve a série “Cartas de Portugal” para a Gazeta.
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