Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Literatura

Nina Simone, uma diva vinda da Califórnia

Nadine Cohodas faz um retrato perturbador da cantora americana, confirmando sua genialidade, em biografia lançada nos EUA

Nina Simone: uma cantora “anti-Louis Armstrong” | Divulgação
Nina Simone: uma cantora “anti-Louis Armstrong” (Foto: Divulgação)

Nova York - "Nunca serei palhaça de vocês," gritou Nina Simone para a plateia impaciente numa casa noturna em Cannes em 1977. O público formado em sua maioria por franceses não queria cantar junto com ela ou simplesmente não conseguia acompanhá-la, e Nina tomou aquilo como uma afronta pessoal. "Deus me deu esse dom – e eu sou um gênio. Trabalhei na minha arte de seis a 14 horas por dia, estudei e aprendi através da prática. Não estou aqui simplesmente para entretê-los. Mas como posso me sentir viva quando vocês estão todos tão mortos?" O discurso só fez agitar a plateia ainda mais com pedidos para que ela "CANTASSE!". Nina tocou mais algumas músicas antes de suas últimas palavras. "Vocês me devem essa," esbravejou. "Eu não uso um sorrisinho pintado na cara como Louis Armstrong."

Cenas como essa eram banais, especialmente na última metade da carreira de Nina Simone. Sua reputação de inconstante, temperamental e encrenqueira era conhecida, e ela fez muito pouco para desassociar tal imagem em seu livro de memórias, I Put a Spell on You. Simone não era nada senão paradoxal. Promovia a militância negra e falava de seu amor pelo que ela chamava de "meu povo", mas, com frequência, tratava as plateias negras com desdém e complacência. Também brigava com plateias brancas, por vezes até mesmo declarando seu desprezo por brancos, ao mesmo tempo em que fazia uso de canções associadas à cultura jovem dessa mesma gente. Poderia subir ao palco uma ou até duas horas atrasada, balbuciar incoerências ao microfone e repentinamente entregar uma performance digna de levar até o público mais enfadado às lágrimas.

Mas quando chamou a si mesma de gênio – termo geralmente reservado para artistas homens – não foi exagero algum de sua parte. De fato, o retrato perturbador que Nadine Cohodas descreve em Princess Noire – The Tumultuous Reign of Nina Simone ("Princesa Negra – O Reino Tumultuoso de Nina Simone") só vem a confirmar a genialidade da biografada. A autora se atém às performances no palco, suas decisões musicais e escolhas sartoriais – a alquimia que ela criava a partir de som e fúria. Cohodas, que já escreveu livros sobre Dinah Washington e Chess Records, devota mais espaço à música de Nina do que qualquer outra biografia jamais o fez até então. Entretanto, por mais que a autora se esforce, não consegue evitar o fato de que a fama de Simone está muito mais associada a seu comportamento temperamental, tanto dentro quanto fora dos palcos.

Nina Simone, ou Eunice Waymon, nasceu em Tryon, Carolina do Norte, em 1933 e era a sexta de oito filhos. Seu pai, J. D. Waymon, era um empresário pau-para-toda-obra e sua mãe, Kate, empregada doméstica cuja vocação principal era ser pregadora evangélica. Eunice era ainda muito pequena quando começou a tocar piano em igrejas. Cohonas faz um relato complexo de Tryon e seus subúrbios, uma comunidade à mercê das leis de segregação racial, mas suficientemente bem dividida a ponto de permitir que os Waymons levassem uma vida confortável e que a pequena Eunice tivesse aulas de piano com Muriel Mazzanovich, carinhosamente conhecida como Miss Mazzy.

Eunice dependia de um padrinho branco para pagar por suas aulas e permaneceu totalmente isolada no mundo silencioso e recluso da casa de Miss Mazzy, estudando Bach e sonhando com um rumo diferente para sua vida. Mas os muros que dividiam a polida sociedade de Tryon e a realidade da subjugação racial eram finos e vulneráveis, e ocasionalmente vinham a baixo – como na noite em que seus pais foram convidados a saírem da primeira fila durante um de seus recitais. Eunice, então com 11 anos, ameaçou se recusar a tocar caso seus pais tivessem que se retirar. Até mesmo naquela época, Nina já entendia seu poder como artista.

Eunice continuou seus estudos na Allen School, uma escola de ensino médio particular para garotas negras em Asheville, provavelmente com a ajuda de benfeitores brancos. Prestes a se formar, fez algumas aulas na renomada escola de música e artes cênicas Juilliard, em Nova York, e trabalhou intensamente em sua preparação para uma audição no também prestigioso Curtis Institute em Filadélfia. Rejeitada, seu sonho de se tornar uma grande pianista acabou. Aos olhos de Nina, a recusa da instituição era um sinal de menosprezo racial. Embora Cohodas cite um integrante da instituição, Vladimir Sokoloff, que sugere que a artista simplesmente não estava à altura do instituto, a autora se nega a admitir que as habilidades da artista ao piano fossem menos do que brilhantes. Ela possivelmente foi o maior prodígio a sair da comunidade negra de Tryon, mas, em uma cidade como Nova York, pianistas de seu calibre havia aos montes.

A genialidade de Nina não estava em sua técnica e parece que ela descobriu isso por acidente quando aceitou se apresentar em um clube noturno de Atlantic City durante o verão de 1954 e só passou a cantar por insistência do dono da casa. Já usando o nome artístico de Nina Simone, ela fez uso de sua voz rouca e profunda, bem como de seu amplo conhecimento de gêneros musicais e gosto eclético para deixar suas apresentações mais pessoais em lugares onde o piano tinha o único propósito de criar um clima agradável para os clientes solverem seus coquetéis. E, como observa Cohodas, ela substituiu a típica sexualidade que se esperava de uma cantora pela elegância de um pianista clássico, evocando respeitabilidade e "orgulho de sua raça" por onde passava. Após chegar ao topo das paradas de música pop em 1959 com sua versão de "I Loves You, Porgy", de George Gershwin, ela rapidamente se tornou uma estrela internacional. Nina dava ao público mais do que um apresentação; ela oferecia uma experiência cultural abrangente, diferente do pop e do jazz, tão original que só pode ser associada a sua persona.

A música fez de Nina uma estrela; políticos fizeram dela uma força. Ela se juntou a um pequeno círculo de intelectuais em Nova York para apoiar o movimento em prol dos direitos civis, se manifestando contra o racismo e a injustiça, tocando músicas de protesto e escrevendo algumas outras. Sua canção "Mississippi Goddam", escrita logo após o assassinato de Medgar Evers e a morte de quatro garotas negras em um atentado a bomba numa igreja se tornou um verdadeiro hino. Embora acreditasse que seu ativismo político lhe custasse várias oportunidades de trabalho, no final dos anos 60 ela já havia abraçado seu papel de cantora oficial da militância negra, compondo "To Be Young, Gifted and Black", um poderoso tributo em memória de Lorraine Hansberry. Surpreendentemente, Cohodas não se aprofunda para tentar entender a fonte das visões políticas de Nina nem seu engajamento com figuras como Hansberry, James Baldwin e Stokely Carmichael, ou mesmo como o contexto da libertação dos negros veio a moldar sua visão.

Após estabelecer a genialidade musical, o sucesso internacional e a proeminência política de Nina, Cohodas detalha sua longa decadência. Vale creditar que a autora tenta valentemente manter nossa atenção nas apresentações e na música, mesmo quando são abaixo da média, e mesmo quando a vida da cantora se torna um longo e extenuante emaranhado de atitudes autodestrutivas e amargas decepções. Mas, apesar de prover descrições vívidas sobre o comportamento de Simone, a autora oferece quase nenhuma explicação acerca das razões que a motivavam a agir de tal maneira. Exatamente como a transformação da tímida Eunice Waymon numa diva exigente da noite para o dia ainda permanece um mistério. Somente nas últimas 50 páginas ficamos sabendo que Nina provavelmente sofria de esquizofrenia. Mas seria sua raiva a manifestação de uma instabilidade química não diagnosticada ou era o reflexo de uma vida marcada por fracassos no casamento, nos relacionamentos, na maternidade, seu eterno deslocamento, infortúnio financeiro e um longo histórico de discriminação racial e sexual? Ao que tudo indica Simone ainda sobreviveu à violência doméstica e ao estupro. (Sua bissexualidade, bem como o modo pelo qual o casamento veio a reprimi-la, merece mais do que as poucas linhas que recebeu.)

Durante suas duas últimas décadas (ela morreu em 2003), ao passo que sua doença progredia, considerações financeiras compeliram Simone a trabalhar. Ele precisava fazer dinheiro – para ela mesma e para os seus cujo sustento dependia dela – e seus concertos se tornaram exibições públicas de sua vida e saúde mental decadentes. Cohodas captura um momento lastimoso quando, após uma apresentação no Swing Plaza em Nova York em 1983, agentes federais apareceram para confiscar suas posses, porém não puseram as mãos no dinheiro deixado dentro de um balde que dizia "Sociedade para a Preservação de Nina Simone".

Ao término de seu "reinado tumultuoso", Simone não passava de um esboço de si mesma, uma mulher praticamente falida por uma indústria inescrupulosa, homens exploradores e seus próprios demônios. Como suas apresentações, os últimos capítulos do livro são difíceis de ler, mas impossíveis de ignorar. E como tantos de nós que a vimos em cima de um palco quando ela deveria estar se restabelecendo ou simplesmente aproveitando a vida, os leitores podem sentir uma necessidade urgente de ouvir seus primeiros álbuns para se lembrar do que gostavam nela em primeiro lugar.

Serviço

Princess Noire – The Tumultuous Reign of Nina Simone, de Nadine Cohodas. Pantheon Books, 449 págs., US$ 30 (importado).

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.