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O diretor Murilo Salles, diretor do filme "Nome Próprio" | Cleiton Thiele/PressPhoto/Divulgação Festival de Gramado
O diretor Murilo Salles, diretor do filme "Nome Próprio"| Foto: Cleiton Thiele/PressPhoto/Divulgação Festival de Gramado

Numa cena de "Nome Próprio", o longa de Murilo Salles que abriu ontem (10) a mostra competitiva do 36º Festival de Gramado - embora já esteja em cartaz em São Paulo e Rio -, a protagonista, Camila, diz que seu blog não é um diário nem interativo e acrescenta que ela escreve das entranhas, visceralmente, porque é o que a mantém viva. Mais tarde, ela também diz que precisa organizar o caos de sua vida. Frases interessantes e reveladoras. Salles baseou-se na experiência da blogueira Clarah Averbuck, famosa pelo despudor (sem juízo ético nenhum na palavra) com que se expõe. No blog, ela pode não querer interação nem que as pessoas opinem sobre sua vida. Como personagem de cinema, é diferente.

A própria Clarah polemizou com o diretor, no debate realizado ontem pela manhã. Ela gosta do filme - senão, como explica, não estaria ali -, mas não se sente retratada nele. Os textos de Camila, a personagem, não são os de Clarah, a autora. Sua literatura, goste-se ou não dela, é muito referencial. No filme, a literatura de Camila também é, mas são as referências de Murilo Salles, o diretor, para tratar do desamparo e do feminino (ou do desamparo feminino).

Já que se trata de uma personagem de ficção, fica mais fácil dizer que Camila é uma das figuras mais irritantes que irromperam no cinema brasileiro recente. Ela é autocentrada, radicaliza a busca do prazer, mesmo que isso signifique ferir as pessoas ao redor, e na sua busca da autenticidade insiste em berrar para os homens com quem tem relações - os que a interessam -, que eles a amam, num comportamento de macho possessivo que beira a psicose.

A personagem pode ser, vale repetir, irritante. O filme não é. E Camila, no filme (talvez Clarah, na vida), só dá o grande salto quando transforma o blog em livro e encara a si mesma como ‘outra’. O reconhecimento da alteridade é um dos signos da modernidade. No fim, existem duas Camilas, duas Leandras Leal na tela.

"Nome Próprio", apesar da falta de ineditismo - integrou há quase um ano a Première Brasil do Festival do Rio, em 2007 -, foi uma boa escolha para abrir o festival. Na entrevista que deu sexta-feira ao "Caderno 2", José Carlos Avellar, um dos curadores do evento, disse que Gramado, em 2008, celebra mulheres fortes e propõe uma curiosa tensão entre as novas tecnologias, leia-se o digital, e as tradicionais, a película. "Nome Próprio" concentra tudo isso. Foi feito (e projetado) em digital, trata da cultura dos blogs - um fenômeno atualíssimo - e possui uma personagem feminina forte (espetacularmente interpretada por Leandra Leal, que lembrou, vale acrescentar, que nunca participou da competição de Gramado, mas esteve na cidade no ventre de sua mãe, a também atriz Ângela Leal).

Para Murilo Salles, é salutar que, mais de 20 anos depois de "Nunca Fomos Tão Felizes", seu admirável longa de estréia, ele volte a outro espaço fechado, mais um apartamento, para refletir sobre outro tipo de carência, ou angústia. Lá, a solidão do garoto ligava-se à relação com o pai e à clandestinidade em que este vivia, durante o regime militar. Aqui, é a crítica do mundo atual, mas tão antigo, na medida em que os sentimentos retratados e tudo aquilo que Camila verbaliza, embora midiatizado por novas tecnologias de informação e comunicação, na essência não tem nada de novo.

Sexo, solidão, possessão, frases feitas que, na verdade, são enjambrações em cima de reflexões mais densas e profundas (de escritores e filósofos), tudo isso resulta muito rico e intrigante, na medida em que o risco de Camila, numa era de superexposição, é o de virar objeto (de adoração ou consumo) quando seu objetivo ‘interior’ é oposto.

"Nome Próprio" é um filme radicalmente ‘interiorizado’. Abre-se para dentro, não para fora. E foi um boa alternativa para o longa gaúcho, que passou fora de concurso, "Dias e Noites". Beto Souza baseou-se num livro - originalmente, um folhetim - de Sérgio Jockyman, "Clô Dias e Noites". Numa sociedade dominada pelos homens, Clô sofre todo o tipo de violência do marido, mas reage, com as armas de que dispõe, para se afirmar. Ela também tem frases interessantes.

À tia e à mãe, que comentam sua dificuldade em conseguir um bom emprego, ela responde que foi treinada por elas para viver à sombra, ou à custa, de homens. Ao irmão, que a chama de vagabunda, sua frase é incisiva. Ele tem pruridos morais porque Clô é sustentada por homens casados ou mais velhos, mas aceita como normal ser sustentado pela mãe (e pela própria irmã, cujo comportamento deplora).

Tudo isso seria interessante como representação da hipocrisia social, se o filme não fosse tão insatisfatório como realização. Pegando carona no que diz Murilo Salles, que o ator nem precisa ser bom (mas se for, é melhor), o que importa é sua adequação ao personagem. Pode-se discutir e criticar muita coisa em "Dias e Noites", das escolhas do roteiro à música e à fotografia (captada em digital, transferida para película e excessivamente ‘bonita’), mas o erro da atriz é flagrante.

Naura Schneider faz a personagem da juventude à idade madura sem nenhuma transformação física. É ela e pronto (exceto na cena de seminudez do chafariz, que imita "Desejo e Reparação"). A coisa começa errada aí e compromete o filme a ponto de tornar seus demais defeitos irrelevantes. Não tem nada a ver com o talento da atriz, mas com a sua inadequação. Na verdade, tem gente muito pior no elenco.

O diretor, Beto, já concluiu a gravação - captou as imagens em digital, segundo técnicas ainda mais avançadas do que as utilizadas em "Dias e Noites" - de seu novo longa adaptado de "Enquanto a Noite não Chega", pequena obra-prima (é um livro curto) de Josué Guimarães. Beto está satisfeito. Diz que "Enquanto a Noite não Chega "será seu filme mais maduro. Tomara que seja, para apagar a impressão desfavorável do atual.

A cerimônia de inauguração começou fora do Palácio dos Festivais, com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, que executou trechos de "Carmem", a ópera de Bizet, e fez um pot-pourri de Madonna, bem pop. Dentro do ‘palácio’, Renato Aragão, o Didi, abriu a festa ao receber um Kikito de Ouro especial por sua carreira de 47 filmes, incluindo os 7 que estão entre as 10 maiores bilheterias do cinema brasileiro.

O trapalhão lembrou seu começo difícil, hostilizado pela crítica, e diz que o reconhecimento - ele recebeu, há pouco, homenagem da Academia Brasileira de Cinema - chega no momento certo, em que ele precisa de estímulo para seguir adiante, enfrentando os blockbusters de Hollywood, como "Batman - O Cavaleiro das Trevas", que ocupou quase todo o mercado e deixou o outrora campeão com 80 salas para o seu "Guerreiro Didi e a Ninja Lili".

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