
O vencedor está só. Não exatamente só, entretanto. Junto com ele, viaja uma comitiva de editores, agentes e jornalistas, que ocupam um vagão inteiro do trem que faz o trajeto da ferrovia Transiberiana, que corta a Rússia de Moscou a Vladivostok, próximo ao Mar do Japão.
O vencedor está triste. Não exatamente triste, na verdade. Está apenas tendo uma "crise de fé", nome dado pelo autor ao tédio provocado pela rotina de viagens, recepções e coquetéis chiques ao qual o escritor multiplicador de obras lucrativas precisa se entregar. O remédio, portanto, é trocar elegância e paparicação constantes por uma desconfortável e gelada viagem pelo interior da Rússia.
No recém-lançado O Aleph, Paulo Coelho ensaia uma obra revisionista de sua bem-sucedida trajetória como ficcionista engajado ao misticismo. Usando sua própria persona de mago como personagem principal, Coelho relata a sua viagem pela Transiberiana, em 2006 originalmente uma turnê de divulgação de seus romances inserindo os habituais elementos metafísicos, como experiências fora do tempo, reencarnação e sabedorias transcedentais. Para o autor, a viagem de trem pela Rússia é comparável à peregrinação pelo caminho de Santiago de Compostela, descrito em O Diário de um Mago (1987) um dos estilingues que o lançou para a fama mundial.
O livro de Coelho recebeu o mesmo nome de um livro de contos de Jorge Luis Borges publicado em 1949. É interessante notar a conexão (nada espiritual, frise-se) que Coelho faz com a obra do argentino. O Aleph borgeano é um pequeno objeto circular, "de dois ou três centímetros", encerrado entre as tábuas de um porão, que concentra tudo o que existe no mundo. Ao olhá-lo, o personagem visualiza todas as épocas, todos os objetos e todas pessoas. A bela parábola sobre a volatilidade do conhecimento visto através de uma fresta ("Felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento", termina o conto) é relida por Paulo Coelho como um portal de autoconhecimento por onde é possível se reconectar com vidas passadas. Deixa de ser um objeto para se tornar um espaço vazio na passagem entre dois vagões do trem. O Aleph de Paulo Coelho é um ponto fluido, instável e desarraigado movendo-se pelo espaço, seguindo o traçado desenhado pelos engenheiros da Transiberiana. De certa maneira, ilustra a obra de seu autor.
Não por acaso, o Aleph de Paulo Coelho exibe e reflete tão somente a imagem de seu criador. A relação de dependência ao astro se estende aos personagens secundários, que jamais estabelecem qualquer oposição à persona do autor. Dos personagens-discípulos, é quase instrutivo acompanhar a involução de Yao, um mestre em aikidô e intérprete de Paulo Coelho. De interlocutor honesto, se torna uma personagem submissa e imatura.
Por vezes, na narrativa, o próprio Coelho-personagem percebe a ausência de conflito na trama. Tal como seu Aleph, o novo livro do Coelho-autor flutua sem direcionamento literário. Escrito para um público-leitor ansioso por respostas práticas, chega a ser intrigante a maneira como os textos do mago volteiam em múltiplos adendos e contradições.
Enquanto a obra de Borges é como o seu Aleph, contundente a ponto de asfixiar o leitor, a de Coelho não enraíza muito longe de sua própria leitura do Aleph, onde a função do livro mais recente é apenas substituir o mais antigo e ser o predecessor do ainda mais recente. "O tempo não ensina; ele nos traz apenas a sensação de cansaço, de envelhecimento", afirma o personagem J., mestre do autor-narrador. "Na magia e na vida há apenas o momento presente, o AGORA", concorda Coelho e, também, o mercado editorial. G1/2
Serviço
O Aleph, de Paulo Coelho. Sextante, 256 págs., R$ 24,90.



