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O artista é um fingidor

O curador Pierre Lapalu revela trajetória inédita de um suposto artista curitibano, morto há 6 anos, em retrospectiva no Solar do Barão. A verdadeira proposta desta exposição só é revelada na metade desta reportagem

Pierre Lapalu buscou inspiração nos contos de Jorge Luis Borges para compor a mostra | Fotos: Pierre Lapalu/Divulgação
Pierre Lapalu buscou inspiração nos contos de Jorge Luis Borges para compor a mostra (Foto: Fotos: Pierre Lapalu/Divulgação)
No fim de sua vida, Joaquim Nunes de Souza exibe um traço raivoso ao retratar personagens das ruas curitibanas |

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No fim de sua vida, Joaquim Nunes de Souza exibe um traço raivoso ao retratar personagens das ruas curitibanas

Você provavelmente nunca ouviu falar em Joaquim Nunes de Souza (1982 – 2004). A supostamente antropofágica Curitiba costuma ser injusta com a memória de seus artistas, mas este talento precoce, que enfrentou adversidades como a pobreza e uma esquizofrenia desenvolvida poucos anos antes de morrer de pneumonia, aos 22 anos, finalmente recebe o reconhecimento que merece.

A exposição retrospectiva O Etnógrafo Naïf, em cartaz no Centro Cultural Solar do Barão, organizada pelo curador Pierre Lapalu com apoio do Instituto Paranaense de Estudos Antropológicos (IPEA) e da Fundação Cultural de Curitiba, tem como objetivo resgatar a tortuosa trajetória deste artista que foi uma espécie de observador silencioso da sociedade.

Joca, como preferia ser chamado, desenhava os rostos de moradores de bairros curitibanos, pedestres do Centro, passageiros nos terminais de ônibus, em uma tentativa ambiciosa de catalogar e classificar os habitantes de sua cidade. Ao lado dos desenhos, fazia observações escritas que levaram Lapalu a denominá-lo de "etnógrafo naïf". Em uma colagem sobre as mulheres do Bairro Alto, por exemplo, ele escreve ao lado da imagens de uma jovem barriguda: "50% das mulheres do bairro tem este tipo de cintura. Parece genético, mas é cultural".

A obra do artista, então desconhecida, chegou às mãos da psicóloga Adriana Bueno para ser analisada como resultado de uma patologia mental. Diante do teor sociológico de seus escritos, ela encaminhou os desenhos para o Ipea, onde Lapalu organizou a obra a partir do conceito de "antropologia instintiva". "Joaquim havia lido inúmeros livros relacionados à área no sebo onde trabalhara", revela o curador.

O que você acabou de ler acima pode ter soado fascinante, mas é puro exercício ficcional.

Não desta repórter que, como outros visitantes, saiu da exposição acreditando piamente na existência do jovem artista morto. A farsa toda foi criada por Pierre Lapalu, ele, sim, o verdadeiro autor dos desenhos exibidos nas paredes do Solar do Barão, ao lado de textos curatoriais forjados à maneira clássica.

"Queria usar o desenho de modo que ele não terminasse em si mesmo, como é a tradição, então, me apropriei da ficção, muito usada na arte contemporânea. Usei uma tática, digamos, oportunista para atrair o observador para esta história, torná-la mais real", diz o artista de 25 anos formado em gravura pela Escola de Belas Artes do Paraná – Embap.

Inspirado pela literatura do argentino Jorge Luis Borges, Lapalu finge-se de curador e expõe seus próprios desenhos como se tivessem sido feitos por este personagem que é uma espécie de arquétipo. "Ele é torturado, deprimido, coisas que se espera ou se atribui a um artista", ironiza.

A ideia, executada com recursos do Programa Bolsa Produção 2009, da FCC, surgiu da busca de Lapalu por um embasamento contemporâneo para expor seus desenhos. "Nunca os levei tão a sério, retratava as pessoas na rua como mera prática", conta.

O título da mostra nasceu de uma visita que Lapalu fez com um amigo à exposição do artista esquizofrênico Arthur Bispo do Rosário, no Museu Oscar Niemeyer. "Vendo aquelas jaquetas costuradas, ele me disse: ‘isso não não é um artista, é um costureiro naïf", conta o artista, que se baseou na trajetória de Rosário para criar seu próprio artista talentoso e louco.

Em certa medida, Joca e Lapalu são a mesma pessoa. "Tentei fazer um exercício de percepção projetada. Sempre tive interesse em antropologia, no entanto, tentei me distanciar ao máximo das anotações que criei para Joca. Mas não consegui fugir muito do meu traço", conta este designer e programador que agora se dedica à arte.

Organizar uma retrospectiva de um artista fictício foi algo extenuante. "Muitos desenhos não entraram na exposição porque os perdi no processo de envelhecimento do papel", lembra ele, que realizava os esboços na rua e finalizava no estúdio. Em um ano e meio, Lapalu teve que desenvolver obras que contemplassem quatro anos de produção de seu personagem. "Tentava imaginar como o traço dele mudaria, tanto que ele começa bem realista e termina mais solto, estilizado e raivoso", conta.

Com Joca morto, como fará Lapalu? "Preciso pegar meu desenho de volta", brinca, concluindo que "herói que se preze tem que morrer".

Serviço

O Etnógrafo Naïf. Solar do Barão (R. Carlos Cavalcanti, 533), (41) 3321-3367. De terça a sexta-feira, das 9 às 12 horas e das 13 às 18 horas; sábados, domingos e feriados, das 12 às 18 horas. Até 8 de agosto.

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