
Em um de seus textos mais polêmicos, Dostoievski e o Parricídio, Sigmund Freud mergulha na literatura do escritor russo e em seus personagens atormentados para apresentar a sua interpretação da força dos impulsos e dos sentimentos violentos. Segundo o pai da psicanálise, muitos desses atos agressivos estão diretamente ligados ao chamado complexo de Édipo (quando a criança dá-se conta das diferenças entre os sexos e tende a projetar a sua libido dentro do âmbito familiar) e à culpa pelos seus desejos parricidas e incestuosos.
Não seria a primeira vez nem a última que o médico vienense se utilizaria da literatura para exemplificar suas teorias. A arte e a psicanálise não caminham necessariamente juntas, mas não foram poucas as vezes que seus caminhos se cruzaram.
"Dificilmente se pode atribuir ao acaso o fato de que três das obras-primas da literatura de todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles, Hamlet, de Shakespeare, e Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski viessem a tratar do mesmo assunto, parricídio. Em todas as três, além disso, é posto às claras o motivo do crime, a rivalidade sexual por uma mulher", escreveu Freud, em Dostoievski e o Parricídio.
"Freud sempre esteve muito preocupado com os fenômenos da cultura, especialmente a partir da década de 20. Ele tinha atravessado a Primeira Guerra Mundial e se interessado pelas questões da violência e do horror. A psicanálise nasceu como uma práxis clínica, mas atravessou os muros dos consultórios", esclarece a professora da PUCPR e psicanalista Rosa Maria Marini Mariotto.
Com a expansão dos estudos psicanalíticos durante o século 20, muitos escritores trilharam o caminho inverso: partiram da teoria desenvolvida por Freud para compor suas ficções.
Contemporâneo de Freud, o médico e escritor Arthur Schnitzler foi um dos primeiros a escrever uma "ficção psicanalítica": Breve Romance de Sonho. Ambientado na Viena dos anos 20, o livro narra a jornada do médico Fridolin, que, após escutar uma antiga fantasia sexual de sua mulher, é chamado para atender um paciente no meio da madrugada. Inicia-se então uma estranha aventura sexual, recheada de desejo e morte. A história foi adaptada ao cinema por outro entusiasta da psicanálise, Stanley Kubrick, em De Olhos Bem Fechados.
A literatura, o cinema e as artes plásticas se apropriaram dos conceitos da psicanálise e contribuíram para sua divulgação mais ampla. "As artes são formas privilegiadas de manifestação deste outro que transita em nós: o inconsciente", lembra Rosa Maria.
Assim como acontece com a filosofia e a religião, a psicanálise se torna um discurso, uma explicação possível para o mundo e uma possibilidade de se debruçar sobre a existência humana. Mas a prática iniciada com Freud pretende apresentar o sujeito a seu próprio sofrimento, tornando-o responsável por sua condição de vida. Nisso funda-se a sua ética.
"A psicanálise busca alcançar uma mudança de posição do sujeito frente a seu desejo, frente à sua vida", explica a psicanalista Adriana Pellanda Gagno. "Já a auto-ajuda tem um caráter de sugestão, busca reforçar uma posição imaginária, idealizada, que não envolve uma reflexão mais profunda que possa ser sustentada pelo sujeito; ela atua como um anabolizante psíquico na feliz expressão que ouvi recentemente."
Escritores como Irvin D. Yalom autor dos best sellers Quando Nietzsche Chorou, A Cura de Schopenhauer e Mentiras no Divã que, juntos, ultrapassam as 500 mil cópias vendidas no Brasil , têm contribuído para aproximar o universo psicanalítico do grande público. Com vasta experiência clínica, Yalom articula a prática com elementos da Filosofia e da Psicologia.
"Ler sobre psicanálise não significa entender o que é psicanálise, isso é uma especificidade que só se aprende na prática. Mas pode ser uma primeira aproximação. É importante a pessoa ter curiosidade, querer entrar em contato, mas saber como se apreende melhor a situação, senão pode-se formar uma falsa idéia", aponta o presidente do Núcleo Psicanalítico de Curitiba (NPC), Andreas Linhares.
"Tudo depende de como e por quem o tema é apresentado. No Brasil, existem várias publicações sérias que escolhem autores de peso para escrever os artigos. Não há mal nenhum em aproximar a psicanálise do público leigo, o importante é o estilo de transmissão", opina a professora Rosa Maria, relembrando que o próprio Freud havia escrito, em 1901, Psicopatologia da Vida Cotidiana, em que apresenta sua práxis clínica e a Teoria do Incons-ciente ao público leigo.
O interessado em psicanálise tem a sua disposição um grande número de obras específicas, como Folha Explica Lacan, de Vladimir Safatle, e o já clássico Cartas a um Jovem Terapeuta, de Contardo Calligaris; e obras que pretendem usar a teoria como pano de fundo para histórias de ficção. É o caso dos recém-lançados A Interpretação de um Assassinato, de Jed Rubenfeld, e Freud e o Estranho, organizado por Braulio Tavares. Mesmo se muitas vezes alguns livros correm o risco de "pasteurizar" a complexidade do tema, podem servir como porta de entrada para o leigo.
No entanto, é freqüente entre os psicanalistas o questionamento em relação a pertinência do paciente buscar referências nos livros. "Quando alguém decide iniciar um tratamento analítico, quanto menos teoria tiver, melhor. Isso pode levar alguns pacientes a racionalizar demais o processo. E a análise não deve ser uma discussão epistemológica", ressalta Rosa Maria. Opinião compartilhada por Adriana Pellanda: "Se a pessoa conseguir resolver suas questões a partir da leitura de um texto, significa que ela não precisava mesmo de um tratamento". Caso contrário, a melhor alternativa continua sendo o bom e velho divã.



