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São Paulo – Mao, a História Desconhecida (Companhia das Letras, R$ 70; 954 págs.), biografia que a Companhia das Letras lança hoje, tem dois objetivos. O primeiro é elevar o líder da Revolução Chinesa ao panteão das personificações maiores do mal absoluto no século 20, Stálin e Hitler.

O segundo é negar legitimidade à revolução, com o argumento de que Mao e Stálin manipularam um Partido Comunista que não tinha apoio popular e jamais conseguiria derrotar os nacionalistas na guerra civil (1927-1949) se não fossem o empenho soviético e a ingenuidade do enviado norte-americano George Marshall, que não teria se dado conta de que Mao era um agente de Moscou.

As duas mensagens têm como alvo um regime que, sob o capitalismo autoritário das últimas duas décadas, substituiu o comunismo pelo nacionalismo como ideologia e ainda preserva Mao Tse-tung (1893-1976) como o fundador da China moderna. Oficialmente, concluiu-se que o Grande Timoneiro estava "70% certo, 30% errado", os erros sendo a megalomania do Grande Salto para a Frente (1958-1959) e os delírios persecutórios da Revolução Cultural (1966-1976).

Além de desafiarem a versão oficial sobre Mao, a chinesa radicada em Londres Jung Chang e seu marido, o historiador Jon Halliday, querem pôr por terra o que vêem como uma condescendência excessiva do Ocidente. "A maioria das pessoas escrevendo sobre Mao fora da China é muito reverente, uma terrível injustiça com o povo chinês", disse Jung. Não que a historiografia ocidental recente descreva um Mao bondoso, mas o dirigente que emerge da História Desconhecida é um sádico, que envenenou um opositor no partido e negou tratamento de câncer a Chou En-lai, revolucionário de primeira hora.

O livro imputa a Mao 70 milhões de mortes, incluindo vítimas da fome causada pelo Salto para a Frente. O número não é exatamente novidade; a diferença é a ênfase na responsabilidade pessoal do dirigente. Autora do best-seller Cisnes Selvagens (1991), que conta a história das mulheres de sua família durante a ofensiva da Revolução Cultural contra "desvios burgueses", Jung Chang imprimiu às 954 páginas um tom de romance. Isso dá força mercadológica ao livro, mas o enfraquece como documento histórico, apesar das 155 páginas de notas sobre fontes da pesquisa.

"As paredes eram de tábuas finas e alguns dos residentes reclamaram quando o casal fez amor apaixonadamente", é o registro da primeira noite de Mao com sua segunda mulher, Yang Kai-hui. O casal de autores trabalhou em duas frentes. Na primeira, a partir de entrevistas e documentos obtidos na China por Jung Chang, proliferam detalhes sobre o (mau) caráter e a vida privada de Mao. O livro descreve relações doentias com as mulheres, descuido com a higiene, desprezo pelas massas que dizia representar. "Não há sinais de que Mao tenha derivado de suas raízes camponesas alguma preocupação social, muito menos que fosse motivado por um sentimento de injustiça", diz o livro, citando escritos do jovem Mao. Jung, que teve seu primeiro livro proibido na China, disse ter viajado ao país natal em caráter privado, sem contato com as autoridades. Mas entre as fontes inéditas citadas estão diários não-publicados de um filho de Mao e manuscritos da segunda mulher, morta por anticomunistas em 1930. "Mao a abandonou com três filhos pequenos, e ela foi executada por causa dele", disse a autora.

Sentimentos antagônicos

Os manuscritos revelam paixão por Mao e desilusão com o comunismo: "Ah, Matar! Matar! Matar! Tudo o que ouço é este som em meus ouvidos!" Na segunda frente, explorada por Halliday, estão detalhes sobre a relação entre Mao e os soviéticos, encontrados em arquivos russos, albaneses e búlgaros. "A versão oficial diz que Mao ascendeu como um líder nacional contra a vontade dos russos. Mas os documentos mostram que Stálin insistiu em que Mao estivesse no comando do partido. Na época não havia um PC que não tivesse relação com Stálin, mas o fato de que ele esteve por trás de Mao desde o início nunca havia sido documentado", disse Halliday. Outro mito que ele afirma derrubar é o da experiência piloto revolucionária em Yenan, onde os comunistas se estabeleceram em 1935, ao final da Longa Marcha. "Há um mito de que tinham lá uma economia auto-suficiente, mas os documentos mostram Chou En-lai em Moscou relatando um déficit gigantesco no orçamento para os russos cobrirem."

A biografia não se propõe a fazer um balanço da revolução, mas Halliday acredita que a modernização do país já estava em curso sob o nacionalista Chiang Kai-shek e foi interrompida pela invasão japonesa (1937). "O fato de os nacionalistas terem sido eficientes em Taiwan não veio do nada."

Como explicar que um homem sem apoio popular no início e detestado pelos colegas de partido tenha se mantido tanto tempo no poder? "Mao herdou dos russos uma máquina eficiente de controle do Estado, de propaganda, medo e punição", responde Halliday. O livro foi publicado no território semi-autônomo de Hong Kong e, de lá, talvez cruze a fronteira. Falta saber qual será sua eficácia quando, em Xangai, novos livros didáticos fazem uma breve referência a Mao, num trecho sobre etiqueta.

Anthony Saich, professor da Universidade de Harvard que morou anos na Chi-na, diz que "o crescimento tornou-se a fonte de legitimidade do regime". Se der tudo errado, pode ser necessário que a figura de Mao esteja preservada para rechear de novo os textos escolares.

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