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Música

O feio que está na moda

"É som de preto, de favelado/Mas quando toca ninguém fica parado". Ultimamente, os versos da canção "Som de Preto", da dupla Amilckar e Chocolate, têm sido o hino de Raíssa (Mariana Ximenes), personagem da novela América. Revoltada com a traição da mãe, Haydée (Christine Torloni), com quem dividiu um namorado, e com a passividade do pai, Glauco (Edson Celulari), a patricinha virou freqüentadora assídua de bailes funk, ao lado das colegas Rose (Cacau Melo), Manu (Luiza Valdetaro) e Lurdinha (Cléo Pires).

O gênero eletrônico produzido nas favelas cariocas, também conhecido como miami bass, mais uma vez desce o morro e invade a mídia brasileira – desta vez, desassociado da violência e do tráfico de drogas que o marcou nos anos 90 –, centrando as atenções no trabalho de artistas como Tati Quebra-Barraco, Bonde Faz Gostoso, Mr. Catra, MC Frank, Gaiola das Popozudas e do pioneiro DJ Marlboro, que comanda os bailes mostrados na novela das nove.

Som alto, música contagiante, cerveja e ingressos baratos vêm mesmo atraindo moradores dos bairros da Zona Sul carioca às favelas e clubes, onde são realizados os bailes funk. Porém, a situação retratada pela trama de Glória Perez não é de hoje, de acordo com o jornalista Silvio Essinger, autor de Batidão – Uma História do Funk (Record. 292 págs., R$ 42,90), livro que revela as raízes do movimento funk da década de 70 aos dias de hoje. "Isso sempre aconteceu, não é novo. Há mais de dez anos ouço falar de garotas da Zona Sul que resolvem ir aos bailes de favela. É uma realidade que fica à parte da oficial da classe média", explica.

Essinger teve o primeiro contato com o funk carioca há 11 anos, quando ouviu o "Rap do Surfista", presente em uma das coletâneas produzidas pelo DJ Marlboro. "Achei muito interessante. Até então, eu não prestava atenção no movimento funk, achava a produção nacional do início do movimento muito fraca, meio boba. Para minha surpresa, as produções começaram a ficar mais interessantes, acrescentando novos elementos, procurando outros temas e ficando mais próximas à realidade da favela", analisa.

A idéia do livro surgiu em 2002, por sugestão do dinamarquês Andreas Johnsen, que, à época, produzia um documentário sobre o hip-hop ao redor do mundo e se encantou com o miami bass dos morros cariocas. Até então, Essinger, apesar de conhecer a fundo as produções funkeiras, nunca havia ido a um baile, algo que passou a fazer assim que o projeto do livro foi aprovado pela editora. "Hoje em dia é uma das opções mais democráticas, baratas e divertidas do Rio de Janeiro. O som é muito alto, toda a semana tem músicas e artistas novos. É uma alegria", elogia.

A cineasta gaúcha Denise Garcia assina embaixo. Após ter dividido um apartamento no Rio de Janeiro com a banda De Falla – na época em que o grupo de Edu K produzia o álbum Miami Rock 2000, que emplacou a faixa "Popozuda Rock’n’Roll" –, Denise virou fã do batidão, admiração que se intensificou quando ela mudou-se para outro apartamento, desta vez em Ipanema, ao lado da favela do Cantagalo. "Não há nada de exótico. O baile funk é realmente o melhor programa do Rio de Janeiro, porque é uma festa, uma celebração. São milhares de pessoas dançando no mesmo lugar. A energia te toma toda, é sensacional", descreve.

Mas o que chamou mesmo a atenção de Denise foi a participação das mulheres nos bailes funk, algo bem diferente do que ela imaginava "A imprensa metia o pau, dizendo que as músicas faziam com que as mulheres reafirmassem uma posição de objeto sexual. Mas, na verdade, o que me parecia era que elas estavam sendo o sujeito e não objeto, pois eram elas que estavam cantando ‘Eu não gosto de peru pequeno’, ‘Eu pago motel para os homens’. Achei interessante e resolvi procurá-las", conta.

Assim surgiu o documentário Sou Feia Mas Tô na Moda, que narra os bastidores das apresentações de artistas como Tati Quebra-Barraco (autora da canção que batiza o filme) e a primeira turnê européia do DJ Marlboro. Lançado em Londres, no ano passado, Sou Feia... vem sendo exibido pelo Brasil aos poucos, mas ainda não contou com uma sessão curitibana. O filme está em negociações com a Al Jazeera Internacional (rede internacional do mundo árabe) e, em outubro, participa do Festival du Nouveau Cinéma, no Canadá. "Aqui no Brasil as pessoas não gostam muito das coisas que são feitas por pobre e preto, há uma certa reticência. Os caras de lá não têm esse conhecimento do que é a favela, da hostilidade da classe média em relação aos artistas dos morros. Eles gostam da música e sentem a energia", dispara a diretora.

Apesar do preconceito ainda existente, Denise e Essinger concordam que o funk vem sendo cada vez mais reconhecido como uma parte importante da cultura carioca, feita por uma maioria. "O Rio de Janeiro tem muito mais morros e favelas do que bairros de classe média alta. Quando o pessoal fala que a cultura do funk é um gueto, não é verdade. Gueto é a Zona Sul, que é a minoria", compara a cineasta.

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