
Imagine uma cidade onde não existe "insegurança" uma espécie de imenso condomínio de luxo. Isso, em um futuro nem tão distante, por volta de 2050. Nesse centro urbano, viveriam apenas os que têm crédito. Se, por algum motivo, o sujeito vier a não ter mais dinheiro, e não mais consumisse, será expulso. Fora dos limites "urbanos", resta-lhe tentar sobreviver em meio a balas perdidas e ameaças de maníacos e narcotraficantes. Já pensou nisso? Não? Pois o escritor Edson Aran não apenas pensou como também escreveu a respeito.
O resultado dessa problematização está nas páginas de Delacroix Escapa das Chamas, recém-publicado pela editora Record. O livro é apresentado como romance, e pode ser lido assim. Mas também pode vir a ser compreendido como uma obra de contos, pois há quatro fragmentos, breves, que funcionam independentes uns dos outros.
A narrativa é conduzida por meio da trajetória do personagem Wagner Krupa, um crítico de arte. A profissão do protagonista não é aleatória. Ele representa o "mal necessário" num mundo em que apenas o consumo tem relevância. O crítico é solicitado para endossar obras que precisam ser comercializadas. Ele é o apresentador de um programa de televisão, e tudo o que fala é tido como verdade. O crítico elogia as obras de quem recebe propina. Ele é um comerciante. Cria e "vende" reputações. Ninguém o contesta.
A maior parte do dinheiro que Krupa recebe em troca de suas opiniões favoráveis é utilizada na aquisição de produtos que não são de necessidade básica: garotas de programa e vinhos. Durante uma orgia, dentro de um bordel, ele recebe a notícia de que o seu crédito acabou. Pela primeira vez, experimenta a sensação de ser um excluído. A ameaça de vir a ser expulso da Shopping City coloca Wagner Krupa diante de inesperados. Mas, como a cidade é São Paulo (ou seja, é o Brasil do jeitinho), ele encontra brechas, faz acordos com atravessadores (os que criam dificuldade para vender facilidade), corrompe autoridades e tudo dará certo ao final.
Edson Aran, naturalmente, não fez exercício de futurologia. Ele fala, por meio da ficção, do nosso tempo. É óbvio, até demais: quem não tem crédito, não existe. Sem dinheiro, e sem efetuar o ato do consumo, o cidadão torna-se invisível e tende a ser persona non grata nas "shopping cities".
Em relação ao personagem "crítico", é mais do que evidente que muitos profissionais da crítica vendem opinião favorável, até por poucos dinheiros, seja no universo das artes plásticas como em outras searas artísticas. Marchands, todos sabem, endossam "obras de arte" apenas para emplacar bons preços em leilões isso não é nenhuma novidade.
Delacroix Escapa das Chamas não é mera denúncia ou um grito de revolta contra o estado de coisas. Aran apresenta uma crítica sim, mas vale-se de humor (construído a partir de um texto ágil e enxuto) o que faz com que a obra venha a provocar o chamado "prazer da leitura" no público leitor. O protagonista, que acredita que os fins justificam os meios, é uma representação do que pode ser a palavra ridículo. O meio social em que Krupa está inserido humilha e escraviza, sem piedade, o personagem. E ele parece gostar.
Outra nuance que adquire complexidade no livro são as reações de artistas que foram criticados por Wagner Krupa. Ninguém aceita restrição. Alguns agridem verbalmente o crítico. Outros, partem para a luta corporal. Há quem articule planos para matar o destruidor de reputações. O futuro, pelo menos o "inventado" por Edson Aran, não é ficção: já existe, é a nossa realidade.
Serviço
Delacroix Escapa das Chamas. Edson Aran. Record. 176 págs. R$ 29.




