
Algumas vozes têm envergadura monumental dentro da história da música pop do século 20. Definem a arquitetura de seu tempo, abrigando os sonhos e emoções de milhões e inspirando a carreira de incontáveis imitadores. Whitney Houston tem uma dessas vozes.
Com a força dessas palavras, a jornalista Ann Powers, crítica musical do jornal Los Angeles Times, inicia seu texto sobre o álbum I Look to You, que marca o retorno da cantora norte-americana depois de sete anos de afastamento, ocasionado por sérios problemas pessoais, como o fim de um atribulado casamento com o cantor Bobby Brown e o envolvimento com drogas.
O CD, que chegaria às lojas em setembro, teve seu lançamento antecipado para 31 de agosto, a tempo de concorrer ao Grammy. E tem a ambiciosa missão de tentar recolocar no Olimpo do pop uma das artistas mais bem-sucedidas da história, com 170 milhões de discos vendidos e dezenas de recordes acumulados desde que iniciou sua carreira, aos 18 anos. Hoje aos 46, o cenário musical é bem diferente: grandes vozes, a serviço de power ballads, não dão mais o tom. Cada vez mais jovens e, em alguns casos, com menos dotes vocais , muitas estrelas pop apoiam-se mais em suas imagens do que em talento.
É bem possível, no entanto, que o retorno de Whitney seja triunfal, a julgar pelo interesse gerado pelo seu ressurgimento já na cerimônia do Grammy no início deste ano, quando entregou à novata Jennifer Hudson, apontada por muitos como sua sucessora, a estatueta de melhor álbum de R&B.
A primeira e boa notícia é que I Look to You é um bom CD. Não excelente. Nem espetacular. Mas à altura da bem-sucedida discografia de Whitney e com alguns hits potenciais entre suas faixas. Triste, no entanto, é perceber que anos de excessos macularam sua voz, à qual Ann Power escreve uma verdadeira ode.
É natural que as cordas vocais de divas da estatura de Whitney, dadas a demonstrações por vezes sutis e narcisistas, sofram desgaste com o tempo e o uso. Mas, no caso da cantora, o dano foi um pouco mais grave. Ainda assim, essa perda de brilho é compensada por suas habilidade técnica e experiência.
Coordenado pelo grande produtor Clive Davis, que descobriu Whitney e sempre exerceu o papel de uma espécie de mentor paternal da cantora, I Look to You reúne um time invejável de produtores e compositores. E de várias gerações. Entre eles, Akon, Stargate, Nate "Danja" Hills, Diane Warren e a também cantora Alicia Keys, outra artista revelada por Davis e que assina o primeiro single do álbum, "Million Dollar Bill". A canção, coerente com o estilo R&B old school de Keys, parece ter sido transportada para os dias atuais direto dos anos 70. Ouvi-la e como estar numa discoteca nova-iorquina, dançando ao som de Diana Ross ou de Thelma Houston.
Autoestima
A letra de "Million Dollar Bill" trata de um tema que parece permear todo o álbum: autestima e capacidade de superação. O exemplo mais óbvio disso é a autobiográfica "I Didnt Know My Own Strength" (Eu Não Conhecia Minha Própria Força), composta pela hitmaker Dianne Warren e produzida por David Forster, com quem Whitney trabalhou na trilha de O Guarda-Costas. A letra fala da queda, da proximidade de uma derrocada irreversível, do medo de não ser capaz de reagir. E, é claro, do retorno. A grande sacada, contudo, é a humildade de Whitney de dispensar efeitos de gravação em estúdio que ocultariam o desgaste de sua voz, agora menos límpida e mais arranhada, algo rouca. Sobressai a interpretação e não o virtuosismo.
Percebe-se ao longo das 11 faixas de I Look to You que Clive Davis, os produtores e a próporia cantora tiveram todo cuidado para evitar arranjos vocais e melodias que exigissem de Whitney o alcance dos velhos tempos. O irônico é que ela se saia melhor justamente nas faixas nas quais suas limitações atuais ficam mais evidentes, como "Nothin But Love".
Um dos melhores momentos do disco é a deliciosa releitura do clássico R&B "A Song for You", de Leon Russell, que se inicia intimista, centrado no belo timbre da cantora, mas eventualmente explode numa apoteose à dance music. Percebe-se que Whitney se desdobra para chegar lá, mas consegue.
No fim das contas, ao fim da audição de I Look to You, fica no ar uma sensação estranha, que mistura pitadas de melancolia a boas doses de esperança. Se Whitney não é mais aquela jovem que parecia não fazer esforço algum para alcançar e projetar sua voz monumental, mas nem sempre sutil, a cantora, talvez por conta do mesmo processo doloroso que lhe trouxe limitações, dá pistas de estar mais preocupada agora com a qualidade do que pretende fazer daqui para frente. GGG1/2
Serviço
I Look to You. Whitney Houston . Sony BMG. Preço médio: R$ 29,90.




