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Literatura

O método por trás do mito

Considerado o pai do movimento beatnik, o escritor norte-americano Jack Kerouac (1922-1969) é visto como um dos precursores da chamada prosa espontânea, estilo que desenvolveu ao longo de sua carreira. Porém, o que para muitos não passa de uma maneira descompromissada e livre de narrativa, é, na verdade, algo planejado e ensaiado à exaustão por Kerouac, homem que trabalhava em cima de sua máquina de escrever cerca de doze horas por dia e que rezava a Cristo antes de iniciar cada "expediente". Essas e outras revelações acerca do mito beat estão presentes em toda a extensão do volume Diários de Jack Kerouac: 1947 – 1954 (Tradução de Edmundo Barreiros. 359 págs., R$ 49), obra publicada nos EUA em 2004 e que agora chega às prateleiras brasileiras pelas mãos da editora gaúcha L&PM.

Editado pelo historiador norte-americano Douglas Brinkley, o livro conta com textos extraídos de material escrito entre junho de 1947 e fevereiro de 1954, época que abrange a produção e o lançamento de seu primeiro romance, The Town and the City, e o processo criativo e as anotações das viagens que deram origem ao título mais célebre do escritor, On the Road (Pé na Estrada, na tradução nacional).

A primeira parte dos diários dão conta da escrita de The Town and the City, romance de estréia de Kerouac, publicado em 2 de março de 1950. Composto em Ozone Park, vizinhança operária na parte pobre do bairro de Queens, em Nova Iorque, o livro teve como impulso a morte do pai de Kerouac, Leo, vítima de câncer de estômago em 1946. Foi na cozinha do pequeno apartamento no Queens que Kerouac produziu as cerca de 1.200 páginas manuscritas do romance, somando quase 300 mil palavras, no total. Foi lá, também, o local em que o autor explicitou, nas folhas de seus diários, a preocupação em tornar-se um grande e duradouro romancista, além do esforço para desenvolver sua trama e seus personagens da melhor maneira possível. "Se os homens comuns, os homens que acordam e mantém seu silêncio, fato que faz com que não sejam comuns – se, então, os homens em geral fossem escrever todos os seus pensamentos, ou uma fração deles, que universo de literatura teríamos! E eu luto com esses rabiscos e garranchos feitos a lápis", registra em 23 de junho de 1947.

Entre as divagações literárias e metódicas de Kerouac – em muitas passagens dos diários ele apenas se queixa do pouco número de palavras escritas por dia – fica clara sua devoção a uma espécie de catolicismo místico, representada pela abundância de teologismos místicos cristãos. "Os ensinamentos de Cristo foram uma direção, um enfrentamento violento, uma confrontação e uma confusão do terrível enigma da vida humana. Que coisa miraculosa! Que pensamentos Jesus devia ter antes de ‘abrir a boca’ no Monte e fazer seu sermão. Que sombrios e extensos pensamentos silenciosos!", filosofa em 27 de junho de 1947, em um capítulo intitulado "Sobre os Ensinamentos de Jesus".

A segunda parte dos diários abrange as anotações de viagens que viriam a ser material de base para On the Road, além de ensaios de personagens, esboços de diálogos e rascunhos de capítulos, desmitificando, de certo modo, a "lenda" de que Kerouac teria escrito sua obra-prima em apenas 20 dias, movido a café e ao som de uma rádio de jazz do Harlem. "Ele não tinha apenas um resumo coerente e detalhado de uma página para a maioria dos capítulos, mas partes dos diálogos também foram escritas antes de abril.", explica o editor do livro.

A mesma desmitificação acontece em relação à seu estilo de escrita, cuja preparação meticulosa é defendida pelo editor dos diários. "A produção prolífica de Kerouac, como estes diários comprovam, foi o resultado tanto de muitos esboços e rascunhos e autodisciplina criativa, quanto da crença na noção da prosa espontânea. Isso se manifestou mais tarde na meticulosidade com que Kerouac mantinha seus diários e diários de trabalho.", analisa.

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