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Clássico

O mito grego em ritmo de bossa nova

Há 50 anos, Orfeu Negro conquistava a Palma de Ouro em Cannes. O filme, coprodução com França e Itália, foi o único longa brasileiro a vencer o Oscar

Tom Jobim e Vinicius de Moraes: dupla de compositores comparável aos irmãos Gershwin e a Lennon e McCartney | Arquivo/Gazeta do Povo
Tom Jobim e Vinicius de Moraes: dupla de compositores comparável aos irmãos Gershwin e a Lennon e McCartney (Foto: Arquivo/Gazeta do Povo)
Marpessa Dawn e Breno de Mello: juntos no mito e na morte |

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Marpessa Dawn e Breno de Mello: juntos no mito e na morte

Samba também é cultura. Em 1956, o diplomata e escritor Vinícius de Moraes — mais escritor do que diplomata — conseguia transpor para o teatro o mito de Orfeu, ambientado no Carnaval carioca. Orfeu encantava a todos com a sua música: homens, deuses, animais. Apaixonou-se por Eurídice, bela como sua música. No melhor clima de tragédia grega, os amantes se encontram, se perdem e só vão se reunir na morte. O Orfeu de Vinícius é negro, sua lira é um violão e a montagem envolve cenografia de Oscar Niemeyer e música de Tom Jobim. A idéia perseguia Vinícius desde o Carnaval de 1942, quando na casa de um amigo topou com uma edição do Orfeu italiano do século 18. Pouco antes, o poeta visitou a favela da Praia do Pinto com um escritor americano, que comentou: "Estes negros parecem gregos. Gregos antes da cultura grega."

Ainda naqueles dias de Carnaval, Vinícius – ao som da batucada de um morro vizinho – escreveu o primeiro ato de Orfeu da Conceição. E parou, assustado: "Preciso repensar, não quero transformar o mito do Orfeu numa peça realista." Cinco anos depois, vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, escreveu o segundo e terceiro atos. Perdeu o terceiro ato numa viagem de avião e o reescreveu.

Em 1955, em Paris, numa feijoada em sua casa, Vinícius encontrou o ator ideal para encarnar o seu Orfeu: Haroldo Costa, que excursionava pela Europa com o grupo Brasiliana. Faltava ainda o principal: como fazer uma peça sobre Orfeu sem música? Vinícius queria como compositor Oswaldo Gogliano, o Vadico, parceiro de Noel Rosa em "Feitiço da Vila", "Conversa de Botequim" e" Feitio de Oração". Vadico, recém-infartado, não pôde aceitar.

Num fim de tarde, no Bar Vilariño, no centro do Rio, Haroldo Costa e Lúcio Rangel recomendam a Vinícius aquele pianista de boate que, quieto numa mesa de canto, bebia uma cerveja (uísque era muito caro para ele). Convite feito, Antônio Carlos Jobim fez a pergunta que entrou instantaneamente para o folclore da MPB: "Tem um dinheirinho nisso aí?" Nasceu naquele momento uma das maiores parcerias da MPB, comparável à dos irmãos Gershwin, à de Rodgers e Hart, nos Estados Unidos, e àquela que surgiria menos de dez anos depois na Inglaterra, de Lennon e McCartney.

No palco

Orfeu da Conceição estreou no Theatro Municipal do Rio em 25 de setembro de 1956 e ficou em cartaz até 30 de setembro. Apenas seis dias, porque a agenda do teatro estava tomada, mas foi um sucesso, reeditado no mês de novembro no Teatro República, na Lapa. Luiz Bonfá fez a dublagem do violão que Haroldo Costa fingia tocar. Na "Valsa de Eurídice", ele tocou com a Orquestra Sinfônica do Municipal sob a regência do maestro Léo Peracchi.

Entre os temas desta primeira montagem estavam "Um Nome de Mulher", "Se Todos Fossem Iguais a Você", "Mulher Sempre Mulher", "Eu e o Meu Amor" e "Lamentos no Morro", todos compostos por Tom e Vinícius. Ainda em 1956 saiu pela Odeon a trilha da peça num LP de 10 polegadas, com Tom Jobim regendo a Orquestra Odeon e Roberto Paiva interpretando os sambas da dupla, acompanhado por Luiz Bonfá ao violão.

Adaptação

O filme não teria existido não fossem as andanças de Vinícius pelo mundo como funcionário do Itamaraty. Ainda em 1955, na França, ele conhecera o produtor Sacha Gordin, que lhe perguntou se não tinha guardada numa gaveta alguma idéia de filme sobre o Brasil. Vinícius tinha o Orfeu, mas Sacha não tinha a verba. Em 1957, numa coprodução franco-ítalo-brasileira, o diretor francês Marcel Camus iniciava no Rio as filmagens de Orfeu Negro, que se estenderiam até 1958. O roteiro foi do próprio Camus, em parceria com Jacques Viot. Mas Camus não quis aproveitar nenhuma das músicas compostas para a peça, pedindo a Tom Jobim e Vinícius de Moraes que escrevessem novas canções. Vinícius estava em Montevidéu a serviço do Itamaraty e, com grande dificuldade, ele e Tom fizeram "A Felicidade", "O Nosso Amor" e "Frevo".

Foi aí que entrou na história o violonista da peça, Luiz Bonfá. Em suas próprias palavras: "Eu já estava morando nos Estados Unidos. No intervalo de uma turnê com Mary Martin, em 1958, viajei ao Brasil e fui convidado pelo Sacha Gordine para compor a trilha do Orfeu Negro. O diretor, Marcel Camus, não queria usar as mesmas canções da peça e pediu ao Tom para fazer novos temas. Mas não ficou satisfeito e praticamente me implorou para escrever uma nova trilha. Eu disse que não tinha tempo, ele insistiu e acabei concordando em escrever duas canções."

Os temas de Bonfá foram vitais para o filme: "Samba de Orfeu" virou um favorito do jazz, com gravações por Tony Bennett, Chris Connor e por instrumentistas como Joe Pass, Charlie Rouse e Paul Desmond. E a bela "Manhã de Carnaval" tornou-se uma das músicas mais executadas em todo o mundo. Bonfá procurou o cronista Rubem Braga para fazer as letras, mas este alegou que era muito lento e indicou outro cronista, "o Gordo", Antônio Maria, capaz destes versos inspirados: "Das cordas do meu violão/Que só teu amor procurou/Vem uma voz/Falar dos beijos perdidos/ Nos lábios teus." Vinícius não ficou atrás em lirismo, como em "A Felicidade": "A felicidade é como a gota/De orvalho numa pétala de flor/Brilha tranquila/Depois de leve oscila/E cai como uma lágrima de amor."

Controvérsia

A escolha da atriz principal foi polêmica. A norte-americana Marpessa Dawn, de 23 anos, apesar da indiscutível beleza, foi contestada por ser estrangeira, quando não faltavam beldades morenas no Brasil. Mas Marpessa fazia sua carreira na França e era amiga de Marcel Camus, que confiava no seu talento. O Orfeu desta Eurídice de sangue afro-filipino foi interpretado por Breno de Mello, gaúcho de Porto Alegre, que antes de se tornar ator foi jogador de futebol, no Renner gaúcho, depois no Fluminense carioca.

Breno passeava na praia no Rio, quando foi abordado por um francês. "Pensei que fosse um lance gay", contaria anos depois, mas era Camus convidando-o a fazer um teste para o papel de Orfeu. Aprovado, revelou-se um ator natural e encantou o mundo com sua atuação como condutor de bonde e violonista nas horas vagas. Juntos no mito, juntos na morte: Breno morreu em 15 de julho de 2008, em Porto Alegre; Marpessa Dawn, 42 dias depois, em Paris. Ambos morreram de ataque do coração.

No elenco figuraram ainda as mulatas Lourdes de Oliveira e Léa Garcia, que fazem um delicioso contraponto cômico à tragédia de Orfeu e Eurídice; Ademar Ferreira da Silva – bicampeão do salto triplo nas Olimpíadas de 1952 (Helsinque) e 1956 (Melbourne) – faz um convincente papel da Morte; e o próprio diretor do filme, Marcel Camus, participa como ator.

Camus viveria um romance da vida real durante as filmagens, casando depois com a atriz Lourdes de Oliveira, que ele dirigiria em 1960 no filme Os Bandeirantes.

Vinícius de Moraes assistiu ao filme pela primeira vez na sala de cinema do Palácio do Catete, ao lado do presidente Juscelino Kubitschek. Ficou injuriado e se mandou no meio da projeção. A bronca do poetinha: "Essa história de puxar pelo exótico não pegou nada bem." Também Jean-Luc Godard criticou o filme na revista Cahiers du Cinéma de julho de 1959, quando se preparava para filmar seu primeiro longa-metragem, À Bout de Souffle/Acossado. Numa resenha intitulada "O Brasil visto de Billancourt" (em referência a região dos estúdios de cinema em Paris), ele reprovava o anacronismo da produção: "Não vi o maravilhoso pequeno aeroporto de Santos Dumont, onde se deveria fazer Eurídice aterrissar entre o oceano e os arranha-céus. E por que não fazer de Orfeu, em vez de motorneiro de bonde, um chofer de lotação? Poéticos aqueles pequeninos ônibus que rodam a toda velocidade entre o estádio do Maracanã e a praia de Copacabana. E poético teria sido o jeito de Orfeu de segurar as notas de dinheiro para dar o troco: dobradas no sentido longitudinal entre cada dedo das duas mãos."

Apesar das críticas, Orfeu Negro seguiu em frente na sua carreira vitoriosa: Palma de Ouro de 1959; em Cannes, Oscar e Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, em 1960; melhor filme estrangeiro da BAFTA, em 1961. E, para um toque mais atual – além de filme musical fetiche do artista plástico Basquiat – é bom lembrar que Orfeu tem presença importante no livro de memórias do presidente Barack Obama, A Origem dos Meus Sonhos/Dreams from My Father: A Story of Race and Inheritance, em que conta que era o filme favorito de sua mãe.

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