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Não-ficção

O mundo através das lentes grossas da fobia

Bem Que Eu Queria Ir é o relato de um músico e escritor que viveu a vida aprendendo a lidar com a condição que quase o esmagou

Allen Shawn busca na história familiar parte da explicação para suas fobias | Divulgação /Cynthia Locklin/
Allen Shawn busca na história familiar parte da explicação para suas fobias (Foto: Divulgação /Cynthia Locklin/)

Ao longo dos seus 60 anos, o compositor de música erudita Allen Shawn perdeu funerais da família e não pôde aceitar convites para ouvir interpretações de sua obra na Dinamarca, Alemanha e Inglaterra. Num certo dia, ele nem sequer conseguiu entrar em um elevador e subir 25 andares para rever um músico que admirava desde a infância.

Shawn tem uma lista impressionante de fobias. Nas páginas 18 e 19 de Bem Que Eu Queria Ir – Notas de uma Vida Fóbica, ele consegue listar mais de uma dezena delas. É difícil dizer exatamente quantas sãos. Muitos parecem desdobramentos de uma mesma fobia. Ele se diz "seriamente claustrofóbico" e, por isso, quando vai ao teatro, se senta sempre no corredor. Evita túneis, metrô, elevadores, algumas viagens de trem e outras tantas de carro. Não gosta de edifícios em que as janelas não abrem e, se vai a um shopping center fechado, não consegue caminhar muito longe dentro dele.

"Em resumo, tenho medo tanto de espaços abertos quanto de fechados e tenho medo, em certo sentido, de qualquer forma de isolamento", escreve Shawn. O livro é resultado de uma disposição fora do comum para lidar com os problemas que tem. "O grau com que me ocupo de mim mesmo é espantoso", diz.

Além de recorrer às ideias de Charles Darwin (1809-1882) e Sigmund Freud (1856-1939), Shawn mostra cultura e informação. Seu texto amarra dados científicos com referências populares. Ele cita o programa The Mind Traveller, produzido pela BBC e estrelado pelo neurologista e escritor Oliver Sacks (autor de O Homem Que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu), usa os desenhos do Pateta para exemplificar a noção infantil que se tem do medo e passeia pelas constatações recentes sobre a natureza da consciência, baseado em pesquisas dos médicos Gerald Edelman e António Damásio.

"Tenho plena consciência de que sou tão qualificado para discutir o funcionamento do cérebro humano quanto para dançar o papel do príncipe no balé A Bela Adormecida", brinca Shawn – o que soa como falsa modéstia, já que a afirmação aparece depois de um capítulo inteiro dedicado ao cérebro.

O livro é um ensaio autobiográfico, em que o autor costura informações com experiências pessoais e põe nele a sua visão de mundo. No que diz respeito à "visão", uma das peculiares de Shawn é a de enxergar tudo e todos através das lentes grossas das fobias.

Cavando na história familiar, ele identifica as fobias do pai, Wallace Shawn, e afirma que este só foi editor por mais de três décadas da revista The New Yorker porque se tornou um obcecado por rotina para conseguir lidar, por exemplo, com a incapacidade de viajar. O fato de o avô ter instalado a família na região dos matadouros de Chicago estaria na origem do medo irracional que Wallace tinha de sangue.

Para além da lógica "tal pai, tal filho", o autor identifica fóbicos célebres, entre eles, a poetisa norte-americana Emily Dickinson e o pintor norueguês Edvard Munch.

Talvez a postura de interpretar o mundo usando uma "lógica fóbica" seja consequência do papel de advogado que Shawn assume para si. Parte do que escreve é para rebater a noção de que a pessoa que sofre com fobias seria alguém "fraco", um "anormal" de caráter duvidoso.

"Se algum dia se determinar que elas (as fobias) são um problema integralmente químico ou biológico, atribuível a um defeito genético como o que causa alergia a amendoim, talvez elas percam seu estigma", diz Shawn.

O mo­mento que descreve é de transição porque, hoje, entende-se que a fobia não é apenas algo "mental", mas envolve também (entre outras coisas) o comportamento, a genética, a neurologia e a evolução. GGG1/2

Serviço

Bem Que Eu Queria Ir – Notas de uma Vida Fóbica, de Allen Shawn. Companhia das Letras, 312 págs., R$ 48.

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