
Na FLIP de 2011, João Ubaldo Ribeiro revelou sua preocupação, durante o processo criativo de Viva o Povo Brasileiro, com a extensão do romance. "Quis escrever um livro grosso. Este foi meu objetivo principal. Isso porque tive que ouvir do meu antigo editor Pedro Paulo de Sena Madureira que escritor brasileiro só sabia escrever livro fino, que pudesse ser lido na ponte aérea. Quis fazer um romance bem extenso, caprichado e grosso."
Mas quantos caracteres fazem do romance um romance grosso como desejava o mestre João Ubaldo Ribeiro?
Depende, é claro, dos tamanhos de fonte, página, mancha gráfica (espaço, na folha, em que o texto é diagramado e impresso). De qualquer forma, para termos noções mais claras, consulto uma edição eletrônica de O Estrangeiro em francês , de Camus. E descubro que o romance, considerado uma pequena obra-prima, desenrola-se em 177.813 caracteres.
Escrevo sobre isso porque nasci na era do computador e, para mim, a quantidade de caracteres no texto é uma preocupação constante. Uma questão obsessiva. Comecei escrevendo para jornal repleto de padrões e limitações pré-determinadas e talvez eu tenha transportado a prática da contagem para a ficção. Conto caracteres o tempo inteiro: do livro em progresso, de parágrafos, capítulos, diálogos; comparo, somo caracteres relativos a cada personagem, temática; sonho com os números.
Paranoia que resultou em meu primeiro romance, Mentiras, ter exatos não cabalísticos 260 mil caracteres.
Fico feliz ao descobrir que não estou sozinho na loucura. José Castello estruturou o romance Ribamar sobre um sistema de caracteres. "Quando comecei a trabalhar no texto final de Ribamar, tinha um longo copião de cerca de 300 mil caracteres. Estava tudo muito prolixo, confuso, nada me agradava. Um dia, ouvi minha mãe, que está velha e doente, cantarolar uma canção. Perguntei o que era: ela me explicou que era a canção que meu pai cantava para que eu dormisse quando era bebê. Cantou-a inteira. Anotei a letra e decorei a música. Depois eu mesmo a cantei para meu irmão Marcos pelo telefone. Ele toca violão e fez a partitura que está agora na capa de Ribamar. A canção só tem notas musicais de três intensidades: mínimas, semínimas e colcheias. Eu precisava de uma camisa de força para chegar a meu texto final, precisava de limites rígidos. Por acaso, descobri que a partitura, cantada com os bis, tem 98 caracteres. Decidi então que ela seria a estrutura de meu romance. Ele tem 98 capítulos. A cada capítulo corresponde uma nota da partitura. As notas em mínima decidi arbitrariamente também me dariam capítulos de 6 mil caracteres. As semínimas que têm a metade da duração das mínimas capítulos de 3 mil. E as fusas, pelo mesmo motivo, capítulos de 1,5 mil caracteres. Claro, a contagem dos caracteres não é exata, me permiti margens de erro (como nas pesquisas eleitorais). E assim montei meu romance, assim ele nasceu."
Castello esmiúça a influência de tal rigidez sobre a composição: "influenciou o estilo: frases curtas, parágrafos curtos, capítulos pequenos. Influenciou a linguagem, que é seca e cortante, embora emotiva. Obrigou-me a trabalhar com muitas imagens, que sintetizassem o que eu queria dizer de forma rápida e forte. Sem essa estrutura, eu não teria escrito Ribamar. Poderia até ter escrito outro livro, mas não este."
Para adequar o longo copião de 300 mil caracteres ao esquema fixo autoimposto, cortes eram indispensáveis. Eram tristes.
"A maior dificuldade foi cortar. Cortar é sempre a maior dificuldade. Eu cortava, cortava, e ainda precisava cortar mais. Cortei vários trechos com muita dor, muito desânimo, achando que cometia uma grande besteira. Temi cortar demais e a verdade é que cortei muito. Mas só por isso, só porque enfrentei o medo de cortar, cheguei a meu livro."
"Ribamar tem no final um pouco menos de 100 mil caracteres. Você vê que cortei pelo menos 2/3 de minhas anotações e rascunhos originais. Isso fez muito bem ao livro. Lembrava sempre de João Cabral de Melo Neto, que dizia que escrever é a arte de cortar, que o escritor é como o escultor que tem uma pedra diante de si e vai arrancando pedaços e mais pedaços até que a obra apareça. É exatamente a mesma coisa."
Surpreso e um pouco aliviado após ouvir a declaração de José Castello, decidi conversar com escritores amigos para constatar se existem obsessões similares (ou a completa ausência de obsessões); relacionando extensão, autolimitação ou, quem sabe, limitações externas com o processo criativo. Além disso, procurei investigar se é comum e frequente a vontade joãoubaldiana de escrever um livro grosso.
Raimundo Carrero afirma que o tamanho do livro influencia o processo criador. E conta que reduziu Tangolomango, publicado em abril, devido a sequelas de um acidente vascular cerebral. "Só agora o meu lado esquerdo vem se movimentando bem." Tangolomango tem cerca de 34 mil caracteres; Carrero é apaixonado por histórias curtas, "onde os autores dizem muitas coisas num espaço pequeno."
Também apaixonado por histórias curtas e curtíssimas , Marcelino Freire foi, durante anos, exclusivamente contista e microcontista. Em seus microcontos, o autor nunca passa de duas linhazinhas. Entretanto, há tempos almejava alongar seu fôlego "mas sempre deixava a respiração no meio do caminho." Finalmente conseguiu; e "foi duro de roer." Nossos Ossos, que será lançado neste ano, encerra 93.641 caracteres; "cresci ou não cresci?", faz graça; "agora eu sou gente grande."
Caminhando em Nossos Ossos, Marcelino contava, de quando em quando, as linhas que já avançara. E ficava orgulhoso. "Quando cheguei aos 50 mil caracteres, eu me senti bem demais. Como alguém que atinge a metade do percurso da maratona. Já sabia, ali, que eu estava na metade da minha missão." O sonho consistia em fazer um livro que se mantivesse de pé. "Estou até animado para, depois, escrever outro romance. Quem sabe um de 500 páginas?"
Aproximadamente quinhentas páginas e, por enquanto, 880.514 caracteres tem o próximo romance de Rodrigo Lacerda, A República das Abelhas. Um romance histórico, inspirado em Carlos Lacerda, que será publicado em breve. "Todo escritor sente vontade em determinado momento da vida de fazer um romance comprido, feito um rio." Sua narrativa precedente, Outra Vida, esbarrou nas duzentas páginas "quase!" ; deixando o autor frustrado.
A República das Abelhas é, portanto, uma vitória.
"Um romance inspirado em fatos biográficos tende a ser maior." Hoje, conforme alerta Rodrigo, existem inúmeras informações e fontes de pesquisa. Mas tentou pensar como leitor e chegou a cortar trechos; a ideia era não extrapolar. Rodrigo Lacerda tem ampla experiência como editor e fez em seu livro, de certo modo, o que fazia em livros alheios; salientando que "o escritor é um pouco editor de si mesmo."
Escritor de formas enxutas, Luís Henrique Pellanda, por sua vez, ainda não sentiu a vontade de fazer um romance-rio. Tampouco de fazer um romance. Dedica-se à crônica e ao conto que pode ser resumido em linhas ou espalhar-se por 60 páginas. "Antes, eu os estruturo e rascunho, e tenho, desde o início, uma boa ideia de que tamanho cada um vai alcançar. É tudo um plano, não imutável. O que cada conto me pede, eu me esforço para dar a ele."
Travando essa batalha, o autor de O Macaco Ornamental e Nós Passaremos em Branco vai conferindo os caracteres "quase como um cacoete, no fim de algumas horas de trabalho. Acho que é uma útil mania mas não essencial. É bom para saber o quanto estamos produzindo, o quanto avançamos, o quanto retrocedemos." Nenhuma obsessão, nota-se; mas o cacoete, no caso de Pellanda, é válido para organização pessoal.
No caso de Rogério Pereira, que, em novembro, publicará Na Escuridão, Amanhã, contar caracteres vem do jornalismo. "Quando vou escrever, penso que tamanho terá determinado trecho, determinado capítulo. Normalmente, dá certo. Tenho certeza de que nunca escreverei livros que param em pé." Mas Pereira não atribui isso ao nosso tempo apressado; porque "as livrarias estão atulhadas de livros gigantescos."
É algo intrínseco, idiossincrático.
"O que mais busco na literatura são os silêncios que os textos produzem. Um dos meus objetivos é oferecer silêncios ao leitor. Sempre em textos breves." Rogério Pereira, em Na Escuridão, Amanhã, foi lapidando e lapidando e lapidando o escritor-escultor de João Cabral e demorou dez anos para escrever o livro. 100.973 caracteres. Com prováveis ajustes até novembro.



