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Visuais

O oceano imagético da fotografia digital

Nunca se tirou tantas fotos como hoje, com o filme em película substituído por pixels e as câmeras semiprofissionais cada vez mais acessíveis. Mas a memória registrada pelos novos retratos pode se perder

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Comprar um filme fotográfico, escolher o número de poses e o ISO, pensar minuciosamente cada retrato para evitar o desperdício, tirar mais uma "para garantir", guardar o rolo de filme com cuidado para não queimar as imagens com o excesso de luz, levar ao laboratório, esperar um ou dois dias, voltar ao laboratório e, finalmente então, ver o resultado. Esses eram as etapas mais básicas da grande maioria de pessoas que queria fotografar qualquer ocasião há pouco mais de uma década. Não é novidade, portanto, que a fotografia digital criou um atalho inestimável entre apertar o botão de disparo e conferir a imagem a tempo de corrigir qualquer imprecisão de luz, foco ou enquadramento.

O avanço da tecnologia foi suficiente para alterar toda a relação entre máquina e fotógrafo. O mais notável, consequência direta da redução de custo de produção de uma foto, é o aumento na quantidade de imagens registradas. "O volume aumentou assustadoramente, mas não houve, em contrapartida, uma responsabilidade do fotógrafo com o momento fotografado", afirma o fotógrafo e professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR) Osvaldo Santos Lima. Para ele, a facilidade em refazer a imagem formou fotógrafos que não pensam a foto, e guiam-se com base na tentativa e erro. "A fotografia é uma das únicas áreas da linguagem em que você pode ‘escrever’ excessivamente sem nunca ter aprendido a ‘ler’. Há uma confiança extrema no automatismo dos aparelhos, e com isso as pessoas se tornam meros operários da câmera fotográfica", conclui Lima, que também é diretor do Omicron Centro de Fotografia.

Como na economia, o excesso de oferta acaba por reduzir o valor de produtos ou serviços. A foto digital fez com que a quantidade de fotos tiradas em uma única viagem atinja a casa de centenas – ou milhares – e isso pode diminuir o apreço individual que se tem por cada uma delas. O fato ocorre tanto por uma possível falta de perícia do fotógrafo quanto pela perda do caráter raro da imagem. "Antigamente, a fotografia era um evento. O fotógrafo ia à casa da família, todos precisavam tomar banho e se arrumar porque haveria apenas uma única foto", comenta o fotógrafo Michel Willian, especializado em fotografar eventos e restaurar fotos antigas. Ele acrescenta: "O equipamento de qualidade está ao alcance da maioria dos usuários, e atualmente fotografa-se praticamente todas as situações do dia a dia. Se por um lado isso gera registros históricos importantes, por outro banaliza o valor que se dá à memória".

Se o ato de fotografar não é um fim em si mesmo, é razoável perguntar: o que fazer com tantas imagens registradas no código binário da informática? Lima afirma que, embora uma foto impressa e emoldurada emocione muito mais do que aquela vista na tela do computador, a tendência da maioria é deixar a imagem eternamente no formato virtual. "Assim como no Twitter, em que as pessoas escrevem coisas banais como ‘estou jantando’, a fotografia também está próxima de registrar todos os momentos do dia a dia", diz. "Hoje em dia existem muitas redes sociais que permitem o compartilhamento das fotos. A satisfação em tirar e mostrar deu à fotografia um tom de fetiche. E pela facilidade de difusão do digital, as pessoas acabam cada vez fotografando mais com esse fim", analisa Lima.

Bagunça virtual

O acervo digital, frequentemente volumoso, fica cada vez mais difícil de ser organizado. As fotos se acumulam em uma pasta de arquivos e, com o tempo, perdem seu referencial histórico. É a constatação que o professor tira da experiência e da observação das tendências. "Vamos ter uma memória visual do início deste século muito mais forte do que o começo do século passado. O problema é que as pessoas estão produzindo registros, mas não estão preocupados em guardar adequadamente esses registros."

Já o cineasta e diretor do Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS), Fernando Severo, diz que manter imagens apenas no computador delineia uma grande perda para a museologia. "A verdade é que não sabemos ao certo a durabilidade dos suportes digitais, e eles se tornam obsoletos muito rápido. A cada transferência de dados de uma máquina ou uma mídia para outra, há uma perda na qualidade cujo prejuízo futuro não podemos prever", conta. Trabalhando principalmente com negativos antigos de fotos de família, Severo afirma que a fotografia é valiosa para se registrar o momento histórico, e com a diminuição da circulação impressa dessas fotos, há uma preocupação em perder muito desse arquivamento. "Ao mesmo tempo, o grande volume de fotos digitais vão exigir muito dos museólogos que pretenderem organizar e classificar esse material", completa.

A solução para que as desvantagens da quantidade não suplantem os benefícios da qualidade digital, para Osvaldo Santos Lima, é simples: a educação visual: "Para o fotógrafo profissional, realmente capacitado e estudado, a fotografia é tão pensada quanto a fotografia analógica. A questão é: quantos profissionais realmente capacitados existem hoje?" De acordo com ele, há "pseudoprofissionais" escondidos por trás da facilidade e do baixo custo do equipamento. "Critérios, ainda que subjetivos de certo e errado [na fotografia], são necessários. Quando você diz que algo está ruim, está ruim porque está baseado em conceitos históricos postos. Tudo é discutível, mas sempre será discutível dentro de um parâmetro." Pensar antes de fotografar, portanto, é a chave para que a memória seja preservada e o futuro não se perca num oceano de imagens avulsas.

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