Uma das revoluções na cultura da música causadas pela internet foi a facilidade de acesso a obras que, na época dos suportes físicos, davam um trabalhão para encontrar. Era preciso rodar lojas, importar títulos que não existiam por aqui, fuçar em sebos para encontrar algum material não reeditado em CD, pedir um disco emprestado para gravar em cassete. Isso nem faz tanto tempo assim. Ou faz.
Mas eis que, quando finalmente você havia aprendido a encontrar os álbuns mais obscuros nas profundezas da web, a driblar a caça da indústria fonográfica a blogs de música e a organizar sua biblioteca do iTunes rigorosamente, com todas as capinhas; depois que comprou um iPod de 160 Gbytes, um HD externo para armazenar tudo... você assina um serviço de streaming de música e começa a desconfiar que sua coleção de arquivos, uns copiados legalmente e outros não, começa a perder o sentido. Sua “biblioteca”, construída ao longo de um processo demorado, custoso e laborioso, vira uma mísera fração do acervo de gigantes como o Spotify, com seus milhões de discos acessíveis instantaneamente por meio de um campo de busca. E que podem ser guardados para ouvir off-line, caso escolha pagar uma mensalidade bastante razoável – opção fundamental em um país tão mal servido de qualidade de redes.
Parece ser este o jeito que a indústria encontrou para acabar com a festa do compartilhamento livre de mp3: fazendo o ato de baixar, organizar e armazenar arquivos de música não valer a pena em boa parte dos casos.
Modelo definitivo?
Parece ser este o jeito que a indústria encontrou para acabar com a festa do compartilhamento livre de mp3, o vilão que fez o mercado de CDs desmoronar nos últimos 15 anos: fazendo o ato de baixar, organizar e armazenar arquivos de música não valer a pena em boa parte dos casos.
E está dando certo. Só o Spotify, que chegou ao Brasil em 2014, diz ter mais de 50 milhões de usuários ativos no mundo todo – 12,5 milhões deles pagantes. O Nielsen Music Report de 2014, divulgado em janeiro deste ano, mostrou que o streaming cresceu 54% nos Estados Unidos no ano passado (enquanto a venda de CDs caiu 14,9%, e a venda de álbuns digitais, 9,4%; o vinil, como se sabe, cresceu 51,8%).
Não dá para dizer, no entanto, que é o modelo definitivo. Spotify, Deezer, Rdio e outros serviços precisam primeiro apresentar o streaming por aqui (até meados do ano passado, metade dos brasileiros nunca tinha ouvido falar nisso, de acordo com uma pesquisa do instituto Opinion Box), e convencer as pessoas a pagarem para ouvir música.
Também precisam chegar a um acordo melhor de divisão de lucros com os artistas, entre os quais o modelo não é consensual – vide a cantora americana Taylor Swift, que retirou seu trabalho do Spotify, e as recentes declarações negativas de Björk sobre o modelo. Os serviços não têm tudo, por sinal. Um exemplo? A obra dos Beatles.
Mudanças
A obsolescência dos dispositivos de armazenamento – a descontinuação da fabricação do iPod Classic pela Apple, em meados de 2014, é um marco significativo desta tendência – é o desdobramento mais palpável da popularização do streaming. Mas as implicações culturais deste modelo de consumo de música também começam a ser conjeturadas. O que significa poder acessar instantaneamente, em seu telefone celular, virtualmente qualquer gravação já feita? Afinal, as coleções de música, para muita gente, eram definidoras de identidade, como lembrou em outubro de 2014 o jornalista Dan Brooks, no New York Times. “Perdemos o que antes era um sistema robusto para identificar espíritos afins. Agora que todos nós compartilhamos a mesma coleção de discos, os esnobes da música não têm meios para reconhecer uns aos outros”, brinca, no artigo “O streaming de música me deixou à deriva” (“Streaming Music Has Left Me Adrift”).
Aquela sua enorme e digna coleção de discos, de alguma forma, todo mundo tem.



