
Quem nunca foi assistir a um espetáculo de dança contemporânea e saiu sem "entender" nada? Isso pode acontecer quando se vê a obra com o olhar acostumado às narrativas e ao código de passos do balé clássico, por exemplo.
O olhar para a dança contemporânea precisa ser flexível e necessita de lentes diferentes para enxergar cada obra. Essas manifestações, assim como a arte contemporânea de modo geral, exigem do espectador uma postura ativa e disponibilidade para entrar em contato com a montagem, mesmo que nem sempre isso seja agradável.
Segundo a bailarina e professora do curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná (FAP), Gladis Tridapalli, "essa estética lida com o público de um jeito diferente, convidando-o a construir o espetáculo em parceria. Mas isso de modo algum tira o papel do artista de construir uma rede articulada de ideias. A relação não existe sem uma proposição particular, é alienante deixar na mão do público todas as leituras", diz.
A bailarina explica que, em seus trabalhos, não faz arte somente para que o bonito seja aplaudido, ou para que a sensação boa seja acolhida. "Quando a gente transita por coisas não muito boas, as pessoas acham que fazemos só para provocar, mas isso não é verdade. Nós também estamos sentindo um estranhamento. A dança contemporânea passa pelo ser humano e a gente não vive só coisas boas ou um mundo de fadas."
Gladis entende a construção de dramaturgia em dança como um jogo, e chama atenção para as dificuldades de colocar em prática os conhecimentos adquiridos com leituras e estudos acadêmicos, algo ainda recente na história brasileira.
"Esse jogo não existe sem trabalho intencional. É preciso aprender a criá-lo e cada grupo inventa suas próprias regras. Gosto muito de pensar o quanto você mantém a ideia, depois a opõe, depois a repete. E repetição não é ruim, porque ela nunca é igual e vem para relembrar o público de alguma coisa. Penso em como causar um estranhamento no público, mas sem deixá-lo se afastar muito. E como deixá-lo se aproximar, mas depois puxar o tapete. Porque esse é o lugar da arte, o de fazer olhar e sentir diferente", explica.
Junto com a bailarina Candice Didonet, Gladis está em temporada com o espetáculo Próximas Distâncias, no Teatro Odelair Rodrigues. Para Candice, um trabalho de dança contemporânea nasce muito antes de se pensar o que vai para a cena. "Essa dança começa na maneira como as pessoas se organizam para trabalhar, nas escolhas que são feitas, nos tipos de procedimentos que são usados para a pesquisa. É um lugar menos espetacular e mais de articulação de ideias, que também está na vida cotidiana e não só quando eu vou ao teatro", diz.
Para Gladis, a palavra-chave da dança contemporânea é a particularidade. "Os grupos começam a construir suas próprias linguagens. E quando eu falo de linguagem, falo de um pensamento de dança que se materializa no movimento."
Estéticas diferentes
É comum chamar de dança moderna ou contemporânea tudo que não use sapatilhas de pontas e que transgrida um pouco a técnica clássica. Mesmo na grade curricular do curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná, ainda existe alguma confusão entre as duas correntes. Até o final deste ano existiam quatro disciplinas chamadas de "Dança Moderna 1, 2, 3 e 4", sendo que as aulas, na prática, eram de Dança Contemporânea.
A dança moderna nasce no início do século 20, em oposição à estética do balé clássico e tem como principais expoentes Mary Wigman, na Alemanha, e Marta Graham, nos Estados Unidos. Ambas desenvolveram suas próprias técnicas de dança, e têm em comum o fato de manterem os pés no chão, metafórica e figurativamente.
No momento em que explodem duas guerras mundiais é impossível continuar vivendo em um mundo de conto de fadas, como propunha o balé clássico. Então os modernos deixaram de dissimular o esforço físico em suas coreografias e passaram a falar da realidade e de seus densos sentimentos.
A postura sempre vertical, a frontalidade e a harmonia dos passos de balé dão lugar a um tronco mais móvel, curvo. Os movimentos agora são, muitas vezes, crispados e contorcidos e partem do centro do corpo. A dança moderna estuda novas possibilidades de movimento em contato mais próximo com o chão e passa a tratar de temáticas psicológicas, expressando, como nas outras artes, o horror das grandes guerras.
A dramatização excessiva deu lugar gradativamente a uma nova corrente estética, a dança pós-moderna, que surge nos Estados Unidos, em contraposição à estética moderna. Merce Cunningham, morto aos 90 anos em julho deste ano, foi um de seus expoentes. Ao deixar a companhia de Marta Graham, onde dançou de 1939 a 1945, ele aboliu qualquer tipo de enredo de sua dança e passou a investigar o que é essencial: o movimento.
Cunningham dava autonomia para que figurinistas, cenógrafos, iluminadores, músicos e dançarinos trabalhassem independentemente um dos outros. Muitas vezes só se conhecia o conjunto da obra minutos antes da apresentação. Assim também acontecia com as sequências coreográficas, que eram escolhidas ao acaso, com base no I Ching, por exemplo. O coreógrafo foi grande inovador no processo criativo da cena.
Modificações significativas no espaço da dança também foram propostas por Cunningham. O palco italiano deixou de ser a única possibilidade. Poderia se dançar em um heliporto, praça ou em qualquer outro lugar. Eliminou-se a hierarquia entre os bailarinos e as posições ocupadas por eles. Qualquer um poderia ser solista, e o centro do palco tornou-se móvel, rompendo com a perspectiva.
O coreógrafo abriu novas possibilidades para a arte. Na década de 60 surge o movimento da Judson Church Dance Theatre, que acontecia na igreja de mesmo nome em Nova York, composto por Yvonne Rainer, Trisha Brown, Steve Paxton, entre outros. Ali qualquer movimento, qualquer corpo e qualquer método eram aceitos. A dança acontecia na rua, com roupas e movimentos do cotidiano, diminuindo a distância entre público e artistas. Essas opções estéticas influenciam até hoje a dança contemporânea.
Um exemplo disso é a obra da alemã Pina Bausch, morta em junho. No Wuppertal Tanztheater ela delineou uma estética única, que fundiu a dança expressionista alemã com a dança pós-moderna americana, e que ficou conhecida como dança-teatro.




