
Um levantamento do Caderno G, da Gazeta do Povo, feito no início de 1999, apontava 18 grupos em atividade na capital paranaense seus projetos, número de membros da companhia e orçamentos. Pode-se dizer que a lista cobria pelo menos 80% do movimento teatral da cidade. E foi feita, então, porque a classe andava nos cascos. Falava-se em uma crise sem precedentes o que era motivo de pânico para um setor que parece ter nascido debaixo da dificuldade, já no tempo dos gregos.
Em meio à crônica falta de políticas, gritada às gargantas, no entanto, como que saltava da página a qualidade invulgar do teatro local. Só fazia aumentar a gastura o sentimento de desperdício de talentos era flagrante. Estavam ali a Confraria Cênica, de Luiz Carlos Pazello; a Delírio Cia. de Teatro, de Edson Bueno... Ponha-se na conta Paulo Biscaia Filho, Felipe Hirsch, Nena Inoue e um palpite. Se à época a reportagem tivesse apontado a Usina das Artes nascida de uma dobradinha de Marcelo Marchioro com Sandra Zugman como a decana de todas as companhias, não haveria cenas de ciúme: todo mundo achava o mesmo.
Marcelo não gozava de unanimidade. Não causaria espanto saber que tinha desafetos ou que provocasse reservas. Seu patrimônio era outro: desfrutava do mais importante dos méritos, o respeito incondicional dos seus pares. Nada que se despreze outros, como Edson Bueno, também recebiam a mesma deferência. A diferença estava na extensão desse respeito. Marcelo tinha sido crítico de teatro e dos bons. Fizera óperas populares junto ao Guaíra. Bingo ganhou com esse trabalho um capítulo na história das artes cênicas.
Tinha também um refinamento acima de qualquer suspeita. Seu repertório passava por Botho Strauss, Brecht, Joe Orton, Steven Berkoff e Juls Feiffer, entre autores pelos quais circulava sem demonstrar um cadinho da timidez da província. Em miúdos, Marchioro trazia a certeza de que a classe não só podia fazer o que quisesse, como podia falar o que bem entendesse sobre o que fez, dando a seus pares uma espécie de atestado de maioridade. Alforria. "Vocês já falaram com o Marchioro?", perguntavam atores e diretores, com frequência, a cada vez que alguém da reportagem ligava para um assunto de teatro qualquer. Não se tratava de submissão: MM lidava como poucos com as fraturas da cena local.
Reformatação
Seu "ato e potência" era tamanho que justo naqueles idos Marcelo como que reformatou a ideia de companhia de teatro. Que o seguissem. Mesmo sem dinheiro. Mesmo as paredes do Guaíra sendo convertidas num Muro das Lamentações. Mesmo com o baixo-astral diante de um público cada vez mais manhoso em relação à falta de ar-condicionado e de estacionamento. Sua Usina das Artes além de Zugman, com quem há de ter tido um encontro cósmico , que covardia, "roubava" Sílvia Monteiro [ligada à Confraria Cênica], Zeca Cenovicz e Claudete Pereira Jorge com quem em 2000 faria a corajosa À Grega. Arrebanhou os quase meninos Sérgio Pardal, Rodrigo Ferrarini e Marco Zenni, que nele encontravam um tutor. E tinha a Léa Albuquerque. Outros tantos. E principalmente Mário Schoemberger.
Marcelo Marchioro e Mário Schoemberger, juntos, eram capazes de fazer aquele alarido todo em torno da crise teatral parecer um "que mentira que lorota boa". Em 1998, fizeram tremer o chão da cidade, que ironia, com uma peça intimista, O Ventre do Minotauro, com textos (e bênçãos) de Dalton Trevisan. Houvesse a eleição da peça afetiva da Curitiba da virada do século seria aquela, sem concorrência, mesmo com a cidade em meio aos escombros culturais mostrando que o ouro é provado no fogo. Muita produção das boas ganhou os palcos, inclusive e por causa, quem sabe, de O Ventre do Minotauro. Estudiosos do teatro, como Marta Morais da Costa, Geraldo Peçanha, Ignacio Dotto talvez possam responder essa equação.
Qualquer que seja a resposta, permanece a tragédia. Depois da montagem, nosso Mário foi descoberto pelo Brasil e se foi, tão cedo, aos 56 anos, uma década depois de O Ventre... Esse choro não tem fim. Marcelo, com o crescimento da esclerose que o levou, esta semana, diminuiu pouco a pouco sua presença na cena local. Difícil dizer que a turma do teatro não se sentiu sacaneada, pô. Mal teve tempo e cabeça para digerir o sentido dessa história da vida real.
Melhor acreditar nos tais dos deuses do teatro. É provável que poucos se lembrem de uma crise como a de 1999 ou 2000. Mas não haverá entre os que provaram dessa arte, em nossas divisas, quem não se pergunte "o que diria o Marcelo?". Ele é nosso clássico, estava escrito.



