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Memória

O que Marchioro diria sobre isso?

Diretor de teatro morto esta semana reinventou ideia de companhia e tratou, como poucos, das fraturas da cultura local

Marcelo Marchioro desfrutava do respeito incondicional de seus colegas da classe teatral | Antonio Costa/Gazeta do Povo
Marcelo Marchioro desfrutava do respeito incondicional de seus colegas da classe teatral (Foto: Antonio Costa/Gazeta do Povo)

Um levantamento do Caderno G, da Gazeta do Povo, feito no início de 1999, apontava 18 grupos em atividade na capital paranaense – seus projetos, número de membros da companhia e orçamentos. Pode-se dizer que a lista cobria pelo menos 80% do movimento teatral da cidade. E foi feita, então, porque a classe andava nos cascos. Falava-se em uma crise sem precedentes – o que era motivo de pânico para um setor que parece ter nascido debaixo da dificuldade, já no tempo dos gregos.

Em meio à crônica falta de políticas, gritada às gargantas, no entanto, como que saltava da página a qualidade invulgar do teatro local. Só fazia aumentar a gastura – o sentimento de desperdício de talentos era flagrante. Estavam ali a Confraria Cênica, de Luiz Carlos Pazello; a Delírio Cia. de Teatro, de Edson Bueno... Ponha-se na conta Paulo Biscaia Filho, Felipe Hirsch, Nena Inoue e um palpite. Se à época a reportagem tivesse apontado a Usina das Artes – nascida de uma dobradinha de Marcelo Marchioro com Sandra Zugman – como a decana de todas as companhias, não haveria cenas de ciúme: todo mundo achava o mesmo.

Marcelo não gozava de unanimidade. Não causaria espanto saber que tinha desafetos ou que provocasse reservas. Seu patrimônio era outro: desfrutava do mais importante dos méritos, o respeito incondicional dos seus pares. Nada que se despreze – outros, como Edson Bueno, também recebiam a mesma deferência. A diferença estava na extensão desse respeito. Marcelo tinha sido crítico de teatro – e dos bons. Fizera óperas populares junto ao Guaíra. Bingo – ganhou com esse trabalho um capítulo na história das artes cênicas.

Tinha também um refinamento acima de qualquer suspeita. Seu repertório passava por Botho Strauss, Brecht, Joe Orton, Steven Berkoff e Juls Feiffer, entre autores pelos quais circulava sem demonstrar um cadinho da timidez da província. Em miúdos, Marchioro trazia a certeza de que a classe não só podia fazer o que quisesse, como podia falar o que bem entendesse sobre o que fez, dando a seus pares uma espécie de atestado de maioridade. Alforria. "Vocês já falaram com o Marchioro?", perguntavam atores e diretores, com frequência, a cada vez que alguém da reportagem ligava para um assunto de teatro qualquer. Não se tratava de submissão: MM lidava como poucos com as fraturas da cena local.

Reformatação

Seu "ato e potência" era tamanho que justo naqueles idos Marcelo como que reformatou a ideia de companhia de teatro. Que o seguissem. Mesmo sem dinheiro. Mesmo as paredes do Guaíra sendo convertidas num Muro das Lamentações. Mesmo com o baixo-astral diante de um público cada vez mais manhoso em relação à falta de ar-condicionado e de estacionamento. Sua Usina das Artes – além de Zugman, com quem há de ter tido um encontro cósmico –, que covardia, "roubava" Sílvia Monteiro [ligada à Confraria Cênica], Zeca Cenovicz e Claudete Pereira Jorge – com quem em 2000 faria a corajosa À Grega. Arrebanhou os quase meninos Sérgio Pardal, Rodrigo Ferrarini e Marco Zenni, que nele encontravam um tutor. E tinha a Léa Albuquerque. Outros tantos. E principalmente Mário Schoemberger.

Marcelo Marchioro e Mário Schoemberger, juntos, eram capazes de fazer aquele alarido todo em torno da crise teatral parecer um "que mentira que lorota boa". Em 1998, fizeram tremer o chão da cidade, que ironia, com uma peça intimista, O Ventre do Minotauro, com textos (e bênçãos) de Dalton Trevisan. Houvesse a eleição da peça afetiva da Curitiba da virada do século seria aquela, sem concorrência, mesmo com a cidade – em meio aos escombros culturais – mostrando que o ouro é provado no fogo. Muita produção das boas ganhou os palcos, inclusive e por causa, quem sabe, de O Ventre do Minotauro. Estudiosos do teatro, como Marta Morais da Costa, Geraldo Peçanha, Ignacio Dotto talvez possam responder essa equação.

Qualquer que seja a resposta, permanece a tragédia. Depois da montagem, nosso Mário foi descoberto pelo Brasil e se foi, tão cedo, aos 56 anos, uma década depois de O Ventre... Esse choro não tem fim. Marcelo, com o crescimento da esclerose que o levou, esta semana, diminuiu pouco a pouco sua presença na cena local. Difícil dizer que a turma do teatro não se sentiu sacaneada, pô. Mal teve tempo e cabeça para digerir o sentido dessa história da vida real.

Melhor acreditar nos tais dos deuses do teatro. É provável que poucos se lembrem de uma crise como a de 1999 ou 2000. Mas não haverá entre os que provaram dessa arte, em nossas divisas, quem não se pergunte "o que diria o Marcelo?". Ele é nosso clássico, estava escrito.

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