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Personalidade

O retorno de Zé do Caixão

Entrevista com o cineasta José Mojica Marins

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O cineasta José Mojica Marins chegou na sexta-feira (10) em Curitiba para apresentar Encarnação do Demônio no 3º Festival do Paraná de Cinema Brasileiro Latino, que termina hoje no auditório do Museu Oscar Niemeyer. O filme é a última parte da trilogia iniciada com À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Seu Cadáver (1967).

Recém-chegado da Espanha, na quinta-feira (9), onde esteve para exibir o longa-metragem, Mojica concedeu entrevista por telefone à Gazeta do Povo. "Já estive muitas vezes em Curitiba", contou. Em duas delas, para filmar O Diabo de Vila Velha (1965) e D’Gajão Mata para Vingar (1972).

Gazeta do Povo – Foram 40 anos de intervalos entre Encarnação do Demônio e os dois primeiros filmes da trilogia. Por que tanto tempo para viabilizar o filme?

José Mojica - Na verdade, 42 anos. Eu tive muito azar quando criei o Zé do Caixão. Nesta época, começo dos anos 1960, escrevi o roteiro do Encarnação e ameaçavam até queimar o negativo se eu insistisse em filmá-lo. Além da ditadura, havia os críticos frustrados, os padres e a censura. Tudo isso assustava muito os produtores que queriam trabalhar comigo. Assim mesmo, no fim dos anos 60, um americano topou segurar a barra. Mas deu zebra: ele teve câncer na garganta, foi internado e morreu. Não tinha esposa, não tinha sócios para dar continuidade à produção. Nos anos 80, Augusto Pereira de Cervantes, o mesmo que produziu o Esta Noite..., resolve apostar no Encarnação. Aí, outra fatalidade. Começa a sentir problemas no coração, põe ponte de safena, não resiste e morre. Também não tinha sócio e era viúvo. No final dos anos 90, surgiu um brasileiro, Ivan Novaes, que disse: "Comigo é diferente. Vou fazer a fita". Nesse ponto, a fita já havia sofrido seis modificações. No dia do almoço em que ele tinha que pagar todos os técnicos, me liga a (atriz) Ítala Nandi para me dizer que o Ivan morreu de emoção. Aí, fiquei assustado. Falei: "Não vai mais sair. Essa fita é maldita".

Em 2000, o Paulo Sacramento me procurou disposto a produzir o filme. Tenho um filho que é advogado, pedi uma orientação e ele me disse que eu não tinha nada a perder. Quis saber se ele era casado: era. Se tinha sócio: tinha. Juntou-se com os irmãos (os produtores Caio e Fabiano) Gullane, que são jovens. Aí começamos a correr atrás de recursos e conseguimos – estadual, federal e outros. Para morrer era muita gente, então tudo bem.

E como foi encarnar novamente o Zé do Caixão aos 72 anos?

Exigiram que eu fizesse o papel. Eu não queria porque era um Zé com 70 e tantos anos e a continuação ficaria sei lá... meio palha. Mas aí adaptei e ficou legal. No meio da filmagem, morre o (ator) Jece Valadão. Mas não fiz como das outras vezes, não parei a fita. Mantive o mesmo Zé do Caixão dos anos 60, um pouco mais envelhecido. Enfrentando uma cidade violenta, como está a grande São Paulo, ele se torna mais violento também. E, dessa vez, ele deu sorte. Morre, mas com a certeza de que deixa sua continuação com o filho perfeito.

É possível que o Zé do Caixão volte em outras produções?

Eu estava escrevendo outro roteiro de terror, que não era com o Zé, mas, com a repercussão que o filme está tendo, pode ser que ele volte. Em São Paulo, estamos na nona semana de exibição nos cinemas, o que não quer dizer que seja um sucesso grande. Lá fora estou tendo muita força na Itália, Portugal, Espanha. O pessoal gostou demais.

Como é ser mais reconhecido lá fora do que no Brasil?

Em 2000, os canadenses me falaram para eu não ficar chateado. Eu era muito revoltado com isso. Ninguém entendia aqui o que era o Zé do Caixão e o Mojica, faziam uma mistura. Mas, quando voltei de lá, comecei a dar muitas palestras nas faculdades para os jovens que têm o destino do cinema amanhã.

O personagem ficou mais violento por causa de uma necessidade do roteiro ou devido aos tempos atuais?

Queira ou não, a violência está presente em todos os países, não só aqui. Mas aqui está muito mais violento do que lá fora. Estou só seguindo o momento.

Passaram-se 40 anos desde que você realizou os dois primeiros filmes da trilogia. Com as novas tecnologias, o filme é muito diferente dos outros dois?

Acho que não. Sofri para fazer algumas coisas parecidas. Uso algumas cenas em preto-e-branco dos filmes antigos para as pessoas entenderem bem a fita. Faço os espectros das pessoas que ele matou perseguirem o Zé Caixão, com imagens em preto-e-branco dentro da cena colorida. Só não quis auxílio do computador porque tinha que provar a mim mesmo que ainda era o mesmo homem. Fiz em película, com efeitos artesanais em que quase tudo é real: o porco, as baratas, o cara se pendurando, a boca costurada. O pessoal deu tudo o que tinha, todo mundo acha o filme forte. É a primeira vez que não tive críticas contra mim. O que era trash virou cult, de agora em diante todas as minhas fitas são respeitadas.

Acabou a fama de maldito?

Acho que acabou. Mesmo com a morte do Jece Valadão – mas ele mesmo falava que estava doente. Acredito que o pessoal em Curitiba vai gostar, tenho muitos fãs aí e gostaria de ganhar esse prêmio (R$ 110 mil para melhor diretor), porque ele vai ajudar a todos que estou aconselhando e que querem fazer cinema de terror.

O que a figura do Zé do Caixão representa no universo do terror, principalmente no Brasil, onde não há uma tradição do gênero?

Ele acabou sendo, como se diz na Espanha e na Itália, uma lenda viva. É bonito as coisas acontecerem e você ainda estar vivo para ver. O Zé faz parte do nosso folclore. Eu posso morrer amanhã, mas não vão conseguir fazer um novo, como não conseguiram fazer um Chaplin, um Chacrinha, um Hitchcock. Pode-se fazer o filho, o neto do Zé do Caixão, mas não o Zé. Faço uma continuação se o mundo todo pedir e eu sentir que tenho saúde pra fazer.

Zé Mojica e Zé do Caixão são muito diferentes?

Zé do Caixão tem a sua filosofia, a sua ideologia, mas temos uma diferença grande: sou um homem casado várias vezes, viúvo duas vezes, tenho sete filhos e o Zé não tem nenhum. Tenho 11 netos (nove homens e duas mulheres), e um deles que logo vai me dar um bisneto.

Como é encarnar um personagem por tanto tempo?

Acho que sou o único que fez isso: manter eu mesmo o próprio personagem. É uma tarefa difícil, principalmente cuidar das unhas. Hoje só conservo uma maior, no polegar esquerdo. Chega uma hora que todos nós cansamos. Eu sou um homem calorento, o que dificulta ao pôr a roupa do Zé. Como é que está o clima no Paraná, por falar nisso?

É bom vir preparado para o frio.

A roupa do Zé, a capa preta, tudo isso será suficiente para me esquentar.

O quadrinho Prontuário 666 – Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão, de Samuel Casal e Adriana Brunstein, retrata os 40 anos de cárcere do personagem. É uma espécie de prólogo para o filme?

Isso aqui em São Paulo está vendendo muitíssimo bem. É para poder sentir o que houve com o Zé nesses 40 anos. O Zé Mojica foi sempre um fã de quadrinhos. Só sabia duas coisas na vida: quadrinhos e cinema. Eu acho que fui o primeiro homem a ser passado do cinema para os quadrinhos, porque normalmente o que ocorre é o contrário.

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