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Os direitos, os humanos e a natureza

O Caderno G Ideias deste sábado analisa o debate em torno da criação de um novo paradigma filosófico e jurídico de defesa da natureza no direito sul-americano

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Vista do Museo de La Pachamama, em Amaicha del Valle, norte da Argentina |

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Vista do Museo de La Pachamama, em Amaicha del Valle, norte da Argentina

As duas mais recentes Constituições promulgadas na América Latina – Equador (2008) e Bolívia (2009) – trazem expressas em seus tex­tos um ino­vador reconhecimento da na­tu­reza como sujeito de direitos, assim entendido como aquele a quem a lei, em sentido amplo, atribui direitos e obrigações.

Há em ambas as legislações um surpreendente deslocamento da visão do homem como o centro do universo. O novo paradigma jurídico dos textos legislativos tem como ideia central a garantia de que a natureza, ou Pachamama ("mãe-terra", na língua ancestral dos povos originais da região), não pode mais ser considerada como objeto de livre disposição do homem, e sim em nível de igualdade com este, por fazerem parte do mesmo todo.

Em um pequeno e precioso livro chamado Pachamama y el Humano (2012, Ediciones Colihue), o jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni analisa com profundidade a questão da garantia de direitos à natureza dentro deste novo momento constitucional sul-americano.

Ministro da Suprema Corte Argentina e um dos mais conceituados especialistas em direito penal do continente, Zaffaroni dedicou-se, no final da década passada, a estudar a relação dos conceitos de ecologia profunda e biocentrismo com o direito constitucional, em um trabalho que lhe valeu o título de doutor honoris causa na Universidade de Quito.

Uma versão mais digerível da pesquisa foi lançada em forma de livro, que deveria, aliás, ganhar uma tradução nacional.

A princípio, o autor exe­cuta um rastreamento do modo em que, desde a An­tiguidade, passando pela Idade Média e o cientificismo cartesiano, se tem reconhecido ou ignorado a natureza e os animais no pensamento filosófico e jurídico.

Após esta análise, Zaf­faroni aborda o tema por seu enfoque fundamental: a busca do equilíbrio entre direitos do homem e direitos da natureza.

A discussão principal investiga qual posição os humanos querem assumir em relação à natureza: "Somos mais um dos convidados a fazer parte da natureza ou ela foi criada para ser nosso habitat, e dela podemos nos servir?", indaga.

Para Zaffaroni, a resposta está na invocação de Pachamama feita pelas duas cartas magnas andinas, que significa "dar o estatuto de pessoa coletiva, uma extensão da subjetividade constitucional, à natureza".

Segundo o jurista, a discussão abre uma nova fase do constitucionalismo global. Até agora encarada no mesmo nível que as coisas tangíveis do direito civil, a mudança do paradigma permite trabalhar em uma nova linha de "respeito à dignidade da natureza".

"Não se trata de ambientalismo destinado a proteger centros de caça ou recursos alimentares escassos para os seres humanos, nem tampouco de proteger as espécies por mero sentimento de piedade, por serem menos desenvolvidas que os humanos, mas de reconhecer obrigações éticas em relação a eles, resultantes do fato de participarem juntos em um todo vivo de cuja saúde dependem todos os seres humanos e não-humanos", explica a obra de Zaffaroni, em tradução livre feita pela reportagem.

Críticas

Dentro do meio jurídico-acadêmico do nosso complexo continente, as inovações conceituais dos legisladores andinos e sua construção política e filosófica têm sido recebidas e estudadas sob diferentes pontos de vista e diversos graus de entusiasmo.

Há quem veja a inovação jurídica com desconfiança, fundada no temor de que sua incorporação prejudique as conquistas modernas em relação aos direitos do homem.

Por outro lado, muitas vozes relevantes do direito e da filosofia latino-americanos conseguem perceber as duas legislações – catalogadas academicamente com o rótulo de neoconstitucionalismo andino – como uma resposta inescapável ao problema da preservação do meio ambiente, tema apontado por muitos analistas como o principal da agenda política do século 21.

Neste mesmo sentido, não raro as inovações das constituições andinas são tomadas como parte de um processo de descolonização da região, que inclui, no discurso e na prática, a adoção de um principio jurídico diverso ao constitucionalismo antropocentrista e politicamente liberal – como o que, a grosso modo, pode definir diplomas legais, como o brasileiro, vigente desde 1988 – que, em regra, privilegia o indivíduo humano como único sujeito de direitos e obrigações.

Para Zaffaroni, as críticas ao novo paradigma andino decorrem, muitas vezes, de desonestidade intelectual. "É muito fácil perverter o discurso ecológico, particularmente profundo, basta caricaturalizá-lo, convertendo-o em um discurso contrário às declarações de direitos e opor o geocentrismo ou qualquer outra tentativa de reconhecer a natureza como sujeito de direitos em um discurso anti-humanista que, por remover o humano do lugar de titular do domínio absoluto da natureza, o degrade em um micróbio eliminável e se opõe à sua conservação."

Estender a personalidade jurídica à natureza não se trataria de um retorno do homem ao "estado de natureza", mas sim de o homem reconhecer-se como parte indissociável dela, sem a qual não pode sobreviver. "Preservar a terra é um direito humano à sua existência. Por ser dotado de razão, o homem deve tratar agora não mais de modificar deliberadamente a natureza e sim de conservá-la."

Em um artigo chamado "Constitucionalismo Ecoló­gico na América Latina", o teólogo e escritor Leonardo Boff endossa esta ideia e aponta que a consolidação deste conceito pode ajudar a formar uma igualdade real, e não apenas formal, dos direitos do homem e da terra. A partir desta mudança, devem ser reorganizadas as relações sociais, algo que pode interferir na criação de uma nova ordem política no continente.

"Os novos constitucionalistas latino-americanos ligam duas correntes: a mais ancestral, dos povos originários, para os quais Pachamama é titular de direitos porque é viva, nos dá tudo o que precisamos e, finalmente, pela razão de sermos parte dela e de pertencermos a ela, bem como os animais, as florestas, as águas, as montanhas e as paisagens", afirma Boff.

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