• Carregando...
Foi o açougue que escolheu Simon e não o contrário. Ele não tem problema com isso: “É o meu trabalho”, diz | Valterci Santos/Gazeta do Povo
Foi o açougue que escolheu Simon e não o contrário. Ele não tem problema com isso: “É o meu trabalho”, diz| Foto: Valterci Santos/Gazeta do Povo

Claudemir Cunha Simon tem cinco metros de pé-direito e uma dimensão de 48 metros quadrados. Ele funciona 11 horas por dia e só não abre aos domingos porque o médico disse que descansar não era uma escolha, era uma necessidade. Todo mundo que conhece Claudemir – na verdade, Cláudio, mas nem ele sabe de onde veio o apelido – tem dificuldade para dizer onde termina o homem e começa o açougue onde trabalha há 28 anos.

Numa sociedade movida a dinheiro e sustentada pelo trabalho, poucos escapam da noção segundo a qual você é o que faz. Mais do que ser açougueiro, Simon é o açougue Santo Garcia. Depois de quase três décadas, um terço delas como funcionário e dois terços como proprietário, ele desafia a ideia de Karl Marx (1818-1893), para quem "O operário só tem o sentimento de ser ele mesmo fora do trabalho e, no trabalho, sente-se fora de si. Sente-se em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não se sente em casa".

Simon só passou a fechar aos domingos em julho passado, depois de 27 anos sem tirar férias nem descansar nos fins de semana. Com 41 anos, começou ali aos 13, fazendo entregas de bicicleta. Na mesma semana em que foi contratado por Santo Garcia, começou a aprender o ofício de açougueiro.

No dia-a-dia, a parte de que mais gosta é o contato com o público. "A pessoa pode chegar aqui só para tirar uma dúvida e não levar nada, eu vou falar com ela por 10, 20 minutos", diz Simon. "Um dia, quem sabe, essa pessoa vai voltar."

Existe quem prefira entrar, comprar carne e sair. Outros, que valorizam a atenção que recebem mesmo quando o objetivo é comprar alguns gramas de músculo para fazer sopa, a experiência de ouvir Simon faz valer a ida ao açougue.

Ele diz que nunca se perguntou se estava no emprego certo. De certa forma, o açougue o escolheu e ele nunca teve problemas com isso. "É o meu trabalho", diz. Se algo fica evidente em poucas horas de contato com Simon é o zelo com que faz o que precisa ser feito. Se pudesse, se dedicaria apenas ao trato com os clientes, mas é necessário manusear as carnes (algo que gosta de fazer), limpar a loja e administrá-la. O filósofo francês André Comte-Sponville diz, no livro A Vida Humana: "O amor ao trabalho bem-feito é um valor, assim como a preguiça ou a negligência são defeitos. É por isso que o trabalho é bom, apesar do cansaço, mas apenas o é, como qualquer meio, sob a condição de ser bom para outra coisa".

Com dedicação ao trabalho, Simon comprou casa, carro e o sustento da família – ele tem mulher e dois filhos. Assim como não pensava nos fins de semana, ele não se preocupa com a aposentadoria. "Eu me concentro em viver o presente", diz. Pergunte se ele está cansado e você vai ouvi-lo dizer que sim, "o corpo cansa, agora que cheguei aos 40, mas a cabeça, não".

Ele só larga o açougue para assistir aos jogos do Coritiba, no estádio Couto Pereira, e para pescar. Aos domingos, quando não trabalha, precisa passar pela loja e ver se está tudo em ordem.

Oásis

A uma quadra de Simon, também no bairro São Francisco – uma região povoada por personagens fantásticos –, trabalha Silvino Tafner, de 67 anos. Quem frequenta a barbearia Oásis, onde ele trabalha, não é cliente, é torcedor. E o time é Tafner.

Quase completamente calvo e de olhos claros, Tafner, a exemplo de Simon, tem talento para o diálogo e a atenção que dispensa aos cabelos dos outros vai além das tesouras e pentes. Não dá para sair da cadeira do barbeiro sem ouvir um pouco sobre sua vida e suas opiniões. "Eu precisava de uma ocupação e paguei meio salário para aprender a cortar cabelos", conta. Ele tinha 19 anos, trabalhou durante 12 meses de graça até ganhar experiência e foi só com ela que veio de Santa Catarina para o Paraná, em 1962.

Ele admite que 48 anos cortando cabelos e fazendo barbas cansa às vezes. "Mas é preciso ganhar a vida", diz Tafner, citando sem querer as palavras de Comte-Sponville. "É simples: precisamos de dinheiro para viver e precisamos quase sempre nos sentir úteis para sermos felizes. É por isso que o trabalho é uma grande coisa, embora menos que o que ele possibilita (o prazer, o repouso, a liberdade...) ou exige (a coragem, a inteligência, a criatividade, o rigor, a solidariedade, a responsabilidade...)", afirma o filósofo.

O médico ainda não mandou Tafner descansar e então ele trabalha sempre: sábados, domingos, feriados, não importa. "Descanso à noite, ou me sento um pouco, como agora, para falar com você", diz. "Eu me canso mais quando não tenho clientes para atender."

Tafner tem um filho adolescente e criá-lo é uma das motivações para seguir trabalhando. Se depender dele, nunca vai parar. "Paro quando morrer", ele costuma dizer.

Discreto, não gosta de se expor. Já foi entrevistado pela Gazeta do Povo para uma reportagem sobre barbeiros e tentou voltar atrás, mas, quando ligou para a redação, não dava mais tempo porque o jornal já estava impresso. "Não gosto de elogio. Gosto do anonimato. Prefiro ficar quieto no meu canto", diz.

A postura de Tafner concorda com Voltaire (1694-1778), para quem o trabalho servia combatia três males: o tédio, o vício e a pobreza. Se dedicar à barbearia, ao açougue ou a qualquer outra coisa é melhor do que não se dedicar a nada.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]