
Numa cena decisiva de Patrimônio, o escritor Philip Roth descreve o momento em que encontra o pai saindo do banheiro depois de quatro dias de constipação pós-cirúrgica. Herman Roth tem 86 anos e um tumor no cérebro do tamanho de uma bola de tênis. Metade do rosto está paralisada e a visão, muito limitada por uma catarata.
Ele não consegue chegar ao banheiro em tempo e se suja inteiro. Tenta se limpar e tomar um banho, mas acaba piorando tudo. "Havia merda para todo lado, pisada no tapete do banheiro, escorrendo pela parede do vaso e em volta dele, formando uma pilha no chão. Havia mais merda borrifada nas paredes do boxe do chuveiro de onde ele acabara de sair e emplastrada nas roupas abandonadas no hall. Mais merda na ponta da toalha com que começara a se secar."
A descrição é crua e objetiva, feita com poucos adjetivos e sem grandes dramas. O livro é todo assim. Vencido o constrangimento inicial o seu e o do pai de Roth , é preciso continuar lidando com as palavras do autor, que descreve em detalhes todo o trabalho de limpar o banheiro até as frestas entre os azulejos. "Tão logo a gente supera o nojo, ignora a náusea e descarta aquelas fobias fortalecidas como tabus, há muita vida para ser acalentada", diz Roth.
Refutando o impulso de encarar sua atitude como símbolo de qualquer coisa, o escritor fala que socorrer o pai no banheiro "era nada mais, nada menos do que a realidade existencial nua e crua". O legado do pai para o filho era este: a realidade.
Que o filho em questão seja um ficcionista, um dos maiores vivos, não é detalhe. Roth resolve lidar com o patrimônio transformando-o em texto. É uma obra de não ficção, mas com toda a imprecisão que o termo abarca. Roth começou a escrever o livro com o pai ainda vivo, recriando diálogos inteiros e reconstituindo cenas vividas de fato. E escrever, mais do que ajudar a entender o que estava acontecendo, era uma forma de ajudá-lo a lembrar.
Patrimônio foi publicado pela primeira vez em 1991, inclusive no Brasil, pela Siciliano. Agora ganha tradução nova, de Jorio Dauster, pela Companhia das Letras. O tema do livro, mais do que a decadência física e a morte que alimentariam várias obras de Roth na última década (Homem Comum, A Humilhação, Fantasma Sai de Cena) , é a memória.
No esforço de registrar o sofrimento do pai e também a própria tristeza de perdê-lo (a mãe havia morrido oito anos antes), Roth faz um tributo ao homem que o criou. "Para papai, se um homem não é feito de lembranças, não é feito de nada."
Voz
É possível que testemunhar a penúria do pai tenha levado o autor a encarar certos tópicos desagradáveis (doença e morte são os mais evidentes). Isso e o fato de ele próprio estar envelhecendo. A crueza e a objetividade no modo como narra já citadas aqui parecem ferramentas ideais para tratar de tópicos que as pessoas costumam evitar.
Uma boa definição sobre o trabalho de Roth foi dada pelo ensaísta A. Alvarez, no livro A Voz do Escritor (Civilização Brasileira). Ele diz que tentar pinçar fragmentos de texto para explicar a força do estilo de Roth é trabalho vão. O seu modo de escrever parece elementar numa frase como: "Preciso lembrar com precisão". Mas, explica Alvarez, uma vez enredado no texto, a voz que se ouve é clara, autêntica e poderosa.
Vencedor do prêmio dado pelo círculo de críticos literários dos Estados Unidos, um dos quatro mais relevantes do país, Patrimônio mostra duas ou três coisas sobre a vida de que você nunca mais vai esquecer.
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Serviço: Patrimônio - Philip Roth. Tradução de Jorio Dauster. Companhia das Letras, 192 págs., R$ 34. Não-ficção.




