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memória

Presente de aniversário

São os filmes restaurados do cineasta Hikoma Udihara, que registrou Londrina até mesmo antes de seu nascimento, há exatos 75 anos

Hikoma Udihara filmava para promover venda de terras no norte do Paraná, região que considerava “um paraíso” | Acervo do Museu Histórico de Londrina
Hikoma Udihara filmava para promover venda de terras no norte do Paraná, região que considerava “um paraíso” (Foto: Acervo do Museu Histórico de Londrina)

Londrina - Os olhinhos da plateia, muitos deles puxados, acompanham a projeção. Quando chega a vez da versão restaurada dos filmes mudos de Hikoma Udihara, a surpresa é geral. "Nossa, meu Deus!", exclama uma senhora, que via pela primeira vez os primeiros anos de sua cidade, Londrina, no cinema. Aproveitando a deixa do aniversário de 75 anos – completados hoje pela cidade – foram exibidos na semana passada, no Museu Histórico de Londrina, trechos de 14 curtas-metragens de Udihara, realizados na região entre as décadas de 1930 e 1960, antes inacessíveis ao público.

Udihara nasceu na província de Kochi, no Japão, em novembro de 1882. Chegou ao Brasil em 1910. Depois de dedicar-se a vários ofícios – de agricultor, a garçom e fotógrafo – em 1922 passou a trabalhar como colonizador na Companhia de Terras norte do Paraná, de origem inglesa, cujo loteamento na região daria origem a Londrina. Identificava-se como o "Único Propagandista do Norte do Paraná" e, para promover a venda de terras na região, que considerava um paraíso, apresentava os filmes para agricultores japoneses.

Legado

"Como a cidade nasceu no século 20, tem a particularidade de ter suas origens registradas em imagens em movimento", ressaltou o jornalista Caio Cesaro, entre um trecho e outro da projeção. Cesaro conseguiu junto ao Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Promic) R$ 48 mil reais para restaurar 15 minutos dos filmes de Udihara – falecido aos 89 anos, em 1972, cuja obra soma 127 títulos em película 16mm, em que registrou com competência visual desde a colheita de café na cidade nos anos 1950 à chegada de um avião com personalidades no aeroporto local.

O jornalista, com 22 latas de filme debaixo do braço, bateu na porta da Labo Cine, no Rio de Janeiro. Francisco Moreira, responsável, entre outros, pelo restauro dos filmes de Nelson Pereira dos Santos, disse que o material que Cesaro tinha em mãos era passível de restauro. O problema era outro: a empresa, acostumada a receber longas-metragens comerciais em 35mm, não estava preparada para registros caseiros, como os 16mm de Udihara. "Decidimos então inventar uma máquina", revela Moreira, também presente na projeção da semana passada.

O que no projeto do programa de incentivo à cultura previa 15 minutos acabou virando uma hora e meia de filmes restaurados por um processo foto-químico, em que fungos e riscos são removidos, e no qual a película é mergulhada quadro a quadro em solvente a base de cloro. Com a técnica, a empresa consegue trabalhar cerca de 2000 fotogramas por dia ou 90 segundos de filme – outros oito rolos de 16mm de Udihara estão na fila.

Uma segunda fase, que pode ter seu custo na casa dos milhões, é o restauro digital, em que cada quadro do filme é digitalizado e trabalhado no computador. Para conseguir esse recurso financeiro, Angelita Visalli, diretora do Museu Histórico de Londrina, responsável pelo acervo, acredita que se fazem necessárias parcerias com a iniciativa privada. "Estamos iniciando a atividade de identificação, para que as pessoas venham ao museu e apontem quem são as personalidades, os eventos e as empresas que aparecem nos filmes, o que pode identificar possíveis parceiros."

Estrela

Ao final da projeção dos curtas de Udihara, Estela Okabayaski Fuzii, de 76 anos, diretora do Núcleo de Estudos da Cultura Japonesa da Universidade Estadual de Londrina, contou que assistia aos filmes quando criança, levada pelos pais à casa do cineasta, na década de 1930. "A cidade era tão pequena e todos eram avisados que teria o cinema de Udihara-san. Ele pendurava um lençol branco e projetava na sala de jantar, para um público de 20 pessoas." Estela foi a estrela de um dos filmes, em que aparecia, aos 15 anos, ao lado de amigas em uma ponte com motivos japoneses, no final da década de 1940. Depois, dirigida pelo cineasta, pegava um pouco de água com as mãos.

Visivelmente emocionado, Issao Udihara, o único dos oito netos do cineasta que mora em Londrina, agradeceu aos envolvidos por preservar a memória de seu avô e da cidade. "Acho que ele gastou parte da fortuna dele com cinema e demorei para me dar conta do valor disso. Não deixou dinheiro para a família. Para mim, ficou um canivete", recorda, bem-humorado. Quando o avô vinha visitar a família, ficava no seu quarto. Issao adorava a câmera, mas tinha desgosto pelas latas de filme, de cheiro inconfundível.

Ele identifica o avô como um sujeito bacana, "totalmente doido e um marketeiro do cão". "Udihara era assim, todo solto, mais parecia um italiano", contou Casuhê Yassuda, mãe de Issao, em entrevista a Cesaro. Quinze anos antes de completar a primeira fase do restauro, o jornalista dedicou o seu trabalho de graduação à produção de filmes em Londrina e, mais tarde, a sua tese de mestrado e doutorado ao cinema de Udihara. Foi um dos criadores da Mostra Londrina de Cinema, a qual chegou neste mês à sua 11.ª edição, que segue premiando os melhores filmes com o troféu Udihara. Cesaro acredita que, em 10 anos, seria possível ver realizado seu sonho da criação de um laboratório para restauro digital de filmes em Londrina.

* O jornalista viajou a convite do festival.

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