O relato dos 3096 dias que a austríaca Natascha Kampusch passou em cativeiro, dos 10 aos 18 anos, foi publicado por ela quatro anos depois de sua fuga como uma desforra. Não tanto contra o sequestrador, o solitário e problemático Wolfgang Priklopil, que ela aprendeu a compreender, quanto contra a polícia que não a encontrou. Sobra também para a família, que ela culpa por uma infância problemática.
Por isso, não causa tanto estranhamento que, já na primeira noite no porão, após ter sido arrastada para uma casa de subúrbio por um técnico em eletrônica, ela tenha pedido um abraço e que ele lhe contasse uma história. Algo compreensível após 36 páginas de relato da vida pré-cativeiro, que inclui muita tensão no relacionamento com a mãe. A garota se descreve à época como uma criança-problema, gordinha, medrosa, que molhava a cama.
Ao longo do livro, Natascha também escreve ou melhor, fala por meio das ghost writers Heike Gronemeier e Corinna Milborn um mea-culpa pelo fato de não ter fugido antes. Ela explica que acreditou, até o fim, nas ameaças do sequestrador de que havia mais pessoas envolvidas no crime.
O terror psicológico e físico ela era submetida constantemente a chutes e socos marcou profundamente sua identidade. Já sobre o abuso sexual, primeira preocupação que vem à mente num caso de roubo de crianças, ela silencia. Diz apenas que houve abusos sexuais menores, e que quando Wolfgang, com 35 anos na época em que a raptou, a acorrentava à cama à noite era apenas para abraçá-la. Isso depois de alguns anos em que ela dormiu num porão de quatro metros por três, no breu completo. As luzes e a energia que alimentava sua companhia preferida, a tevê, eram acendidas às 7 da manhã. A comida era racionada.
Detalhes como esse e a memória das surras foram guardados em um diário, encontrado no cativeiro após a fuga da garota e suicídio do sequestrador.
Em meio ao medo, ela relata alegrias espalhadas por sua adolescência. As tradições festivas, por exemplo, eram rigorosamente seguidas, e oferecem uma breve espiada nos costumes austríacos.
Aliado a esses momentos de prazer, que coexistiram com o martírio ao qual a garota foi submetida, havia a profunda tentativa de compreensão de seu algoz. Talvez pelo fato de ter se sentido muito mal na infância ela relata, como num thriller, que estava pensando em se jogar na frente de um carro momentos antes de ser arremessada para dentro da caminhonete por Wolfgang , Natascha perdoou o sequestrador logo no início do cativeiro e se esforçou para entender seu problema psicológico.
Essa visão da situação foi rotulada pela imprensa como decorrência da "síndrome de Estocolmo" quando o sequestrado se afeiçoa pelo sequestrador , o que enfureceu Natascha.
Muita mágoa também é destinada à investigação policial, já que as duas únicas boas pistas sobre seu desaparecimento foram deixadas de lado. Um dos problemas do texto é que, quando toca nesse assunto, o livro vai deixando pontas abertas. No final, ela cita uma pista deixada por um adestrador de cães, sem explicar do que se trata como se o leitor soubesse de todos os fatos relacionados ao sequestro, fato ocorrido entre os anos de 1998 e 2006.
Esses percalços não tiram o encanto da obra: o intenso fluxo de pensamentos da vítima do sequestro mais longo de que se tem conhecimento.
Serviço: 3096 dias. Natascha Kampusch.Tradução de Ana Resende. Verus, 225 págs. R$ 29,90.



