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Cinema

Provocadores de Minas Gerais

Ao romper com a dramaturgia tradicional, dois longas-metragens mineiros atraíram o olhar do público que lotou as sessões do 43.º Festival de Brasília

O documentário Um Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges, enfoca personagens incomuns da vida real, como Murari Krishna | Divulgação
O documentário Um Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges, enfoca personagens incomuns da vida real, como Murari Krishna (Foto: Divulgação)
Os Residentes, Tiago Mata Machado, explora a vanguarda da arte contemporânea |

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Os Residentes, Tiago Mata Machado, explora a vanguarda da arte contemporânea

Ex-Isto, de Cao Guimarães. Terra Deu, Terra Come, de Rodrigo Siqueira. A Falta Que Me Faz, de Marília Rocha. Há algum tempo, a produção cinematográfica de Minas Ge­­rais vem surpreendendo positivamente o público dos festivais de cinema país afora. No 43.º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que se realiza até o dia 30, duas ficções de Belo Horizonte vieram para causar rebuliço.

Pode-se não gostar justificadamente de Os Residentes, mas é preciso reconhecer a capacidade de provocar polêmica desse projeto de duas horas do diretor, ex-crítico de cinema e videoartista Tiago Ma­­ta Machado – que produziu anteriormente o longa O Quadrado de Joana (2006). Machado causou antipatia no debate do filme pelo radicalismo de suas posições apegadas a um passado artístico. "Minhas referências são filmes de vanguarda. Quase não vou ao cinema, sou adepto da cinefilia de apartamento", disse.

O longa sobre um grupo de pessoas que invadem uma casa e a transformam em uma espécie de zona autônoma, onde a arte é usada como instrumento de guerrilha, é fruto do comprometimento do diretor com as discussões estéticas que se dão, normalmente, no território da arte contemporânea – principalmente, na videoarte e na performance. O encarceramento em um dos quartos de uma artista plástica sequestrada explicita isso. "Esse é um típico filme de antiarte com pretensões artísticas, um filme sobre as vanguardas do século 20, da qual eu e meus personagens nos sentimos órfãos", diz o diretor.

A ocupação da casa é, assim, autorreferência nesse projeto pretensioso, mas sem substância, que o diretor chama de "filme-ocupação". Com total desprezo pela narrativa convencional, Machado rea­­liza um filme feito de sequências que não se conectam, comprometido apenas com sua obsessão pelo estilo, tomando de empréstimo re­­ferências que vão do pintor Robert Smithson aos cineastas Jean-Luc Godard, John Cassavetes e do cinema marginal brasileiro.

Espelhos de nós mesmos

Uma transexual que se prostitui e dá aulas na universidade. Um es­­critor que não quer ser publicado. Um atendente de telemarketing hare krishna, skatista e integrante da torcida organizada do Atlético Mineiro, a Galoucura. Parece in­­venção, mas é realidade. E vice-versa. Os três personagens são pessoas de carne e osso, selecionadas entre mais de cem candidatos visitados pelo diretor Sérgio Borges para protagonizar seu primeiro longa-metragem, Um Céu Sobre os Ombros, exibido para uma plateia lotada na noite de sábado (27). Mas, ao mesmo tempo, desempenham diante das câmeras uma reinvenção de si próprios.

Everlyn Barbin, transexual, é formada em Psicologia e mestre em Literatura. Lwei Bakongo, nascido no Congo de mãe portuguesa e pai angolano, largou cinco faculdades e escreve para si mesmo. Murari Krishna é formado em Medicina Ayur­­­­védica e Filosofia. São pessoas que, pelas suas idiossincrasias, parecem mais fruto da imaginação de um criador contemporâneo. Borges, no entanto, vê neles o espelho de todos nós. "Quis fazer um filme que não revela de onde vêm ou para onde vão essas pessoas, em que essas três vidas pudessem revelar todas as vidas, a complexidade humana, os sentimentos", explica. Um Céu Sobre os Ombros tem apenas 72 minutos de duração, mas permanece com o espectador muito tempo depois de terminada a sessão. O início do filme não nos introduz àqueles personagens. Seu final tampouco encerra uma trajetória evolutiva. O que vemos são mo­­men­­tos, diálogos, "uma síntese dramática" da vida daquelas pessoas que nos permitem conhecer parte de suas angústias, anseios, modos de pensar. Como se passássemos um dia com elas e depois fôssemos embora.

Borges borra os limites entre ficção e documentário – para ele, uma distinção já ultrapassada – ao propor a não-atores que se reinventem diante das câmeras. "Quan­­do projetamos nossos desejos, criamos uma ficção do que queremos para nós mesmos. O filme parte desse pressuposto de que o limite entre realidade e ficção já é parte da nossa existência, independente do cinema", diz Borges.

O diretor deu total liberdade para que o trio – que só se conheceu no avião, a caminho de Brasília – se movimentasse diante das câmeras, mas fez uso de algumas situações artificiais para potencializar sua proposta como, por exemplo, quando Lwei recebe um telefonema de um editor que o convida a publicar alguns de seus textos. A resposta foi um taxativo não. "Não consigo lidar bem com questão da aprovação, por isso, escrevo para mim. Cedi ao permitir ser visto pelo olhar de outras pessoas, mas ainda não sei dizer, de fato, o que se revela de mim nesse filme", diz o escritor.

Entre equipe e elenco se estabeleceu uma relação de cumplicidade e afeto que transborda para a tela. Há, de fato, uma proximidade amorosa entre as câmeras e os corpos dos personagens, que faz o espectador se sentir presente naqueles espaços exíguos onde eles vivem e não julgá-los pelos seus gestos como, quando Everlyn busca afeto ao transar com um cliente ou um angustiado Lwei dizer que não pretende ver 2010.

A repórter viajou a convite do festival.

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