Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
comportamento

Rápido e indolor, se possível

Os rituais fúnebres, que ajudam o enlutado a compreender a perda e reforçam os laços sociais, foram encurtados para evitar constrangimentos e a contaminação da dor

Reprodução da pintura “Mourning Twins” (“Gêmeas em Luto”), da pintora norte-americana Sylvia Maier: a demonstração pública da dor da perda é considerada inadequada no mundo atual | Reprodução
Reprodução da pintura “Mourning Twins” (“Gêmeas em Luto”), da pintora norte-americana Sylvia Maier: a demonstração pública da dor da perda é considerada inadequada no mundo atual (Foto: Reprodução)

Um dia você se pega distraído pensando na morte de uma pessoa querida. Imagina detalhes como as mãos frias do morto, o seu próprio desespero, o caixão sendo lacrado. Fecha bem forte os olhos e, com dificuldade, tenta focar sua atenção em outras coisas. Afinal, aconselham os amigos, "de nada adianta pensar nisso".

Isso, a que as pessoas se referem como algo contagioso, é a morte. "Hoje a morte ocupa no inconsciente das pessoas um lugar perturbador que no passado em grande parte era ocupado pelo sexo. A morte virou tabu", diz o doutor em Ecologia e ministro das exéquias, Evaristo Eduardo de Miranda (leia entrevista na pág. 3).

Em uma sociedade que exalta a vida, o corpo sadio, a beleza, o prazer, parece não haver mais lugar para expressar sentimentos considerados negativos como o sofrimento e o lamento. O próprio luto se tornou algo discreto, reduzido à esfera privada para não causar cons­­trangimento e desconforto. Os rituais fúnebres – velório, cortejo, enterro e cultos – se adaptaram aos novos contornos da sociedade, urbanizada e individualista, tornando-se rápidos e assépticos.

Há 30, 40 anos, parentes próximos eram reverenciados com luto fechado por até um ano. Nos seis meses seguintes, admitia-se o meio luto, com roupas brancas e pretas, e o fumo, a tarja preta na manga da camisa usada pelos homens. O velório era feito em casa e o cortejo até o cemitério tinha o acompanhamento de vizinhos e amigos.

"A toalete do morto passou a ser realizada por especialistas que, mediante práticas higiênicas e tratamento estético, conferem uma aparência de tranquilidade. O velório se tornou curto e, por questões de segurança, dificilmente é realizado à noite. Já o cortejo fúnebre costuma ser limitado ao espaço do cemitério e, geralmente, exclui as crianças", descreve a socióloga Marisete Hoffmann, professora da Universidade Federal do Paraná e autora da tese de doutorado Memórias de Morte e Outras Lembranças.

Presente de grego

Na sociedade que nega o sofrimento, o luto se torna algo que precisa ser contornado rapidamente. "O grupo social respeita a dor da perda, mas tende a ser impaciente quando ela é de­monstrada na esfera pública. Sentimentos de pesar devem ser ocultados, pois lembram a fragilidade e a finitude humanas", diz Marisete.

Ignorar o sofrimento é literalmente um "presente de grego", diz o professor Edmundo de Oliveira Gaudêncio, da Universidade Federal de Campina Grande e da Universidade Estadual da Paraíba. "Herdamos da Grécia clássica a crença de que o melhor modo de enfrentar o luto é não falando dele e, principalmente, não chorando, quando a melhor medida seria ceder à tentação do pranto", diz o doutor em sociologia.

Esse escapismo se reflete em uma queima de etapas prejudicial, afinal, quem não vive o luto em toda a sua dimensão não consegue superá-lo. "Tememos a ‘contaminação da dor’, não oferecemos continência ao enlutado, retirando prematuramente o suporte. Precisamos respeitar nossas limitações e dar espaço para aquilo que nos torna verdadeiramente humanos: nossa capacidade de amar, sofrer a perda daqueles que amamos e, acima de tudo, atribuir significado a essa perda. A sociedade deve contribuir para que o enlutado atribua sentido à perda, oferecendo continência, informação e compreensão", diz Luciana Mazorra, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Além de garantir simbolicamente a passagem para o além, Marisete explica que os rituais fúnebres promovem ainteração entre a pessoa enlutada e o grupo, que lhe transmite apoio e conforto. "Cada ritual tem uma função que ajuda a trazer segurança, amenizando a dor do enlutado e reforçando os laços sociais", diz.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.