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Música

Ray Charles faz miséria no Olympia

DVD e CD resgatam conturbada apresentação de 2000, quando a greve de uma companhia aérea obrigou o astro a usar um teclado improvisado e apenas três músicos

Ray Charles: carisma inegável contra as adversidades | Rick Wilking/Reuters
Ray Charles: carisma inegável contra as adversidades (Foto: Rick Wilking/Reuters)

A história por trás de Live at the Olympia é imprescindível para se entender o valor da apresentação feita por Ray Charles (1930-2004) na prestigiosa casa francesa. A Som Livre acaba de colocar no mercado o CD e o DVD do espetáculo. Aliás, a palavra é perfeita: Ray Charles é espetacular.

No ano 2000, recém-entrado na casa dos 70, o músico estava animado para voltar a Paris porque foi no mesmo Olympia, quatro décadas antes, que pisou num palco europeu pela primeira vez. A incerteza de como seria recebido deu lugar a um sucesso que marcaria o norte-americano para sempre. O compromisso que deveria ser de apenas uma noite virou quase uma semana de shows, com duas sessões diárias, todas esgotadas. Só faltou carregarem Ray nos ombros.

Depois desse episódio, ele nunca mais pisou no Olympia. Daí a aura em torno do evento. O desejo de revisitar um lugar importante para sua carreira orientou o músico numa situação de crise. Viajando pela Europa, ele iria de Lisboa para Paris. No dia 22 de novembro, uma greve na empresa aérea que faria o transporte da equipe de 35 pessoas e dos instrumentos criava um problema e tanto para a produção, que pensou em cancelar o Olympia, programado para aquela noite.

O empresário Jean-Pierre Grosz conseguiu apenas sete lugares em outro voo e explicou a situação para Ray. Cancelar talvez fosse a melhor saída. O astro disse que isso estava fora de questão. Preferia improvisar um show do que não fazer show nenhum. Queria rever o Olympia.

A situação que se desenhou em seguida é coisa de cinema. Ray Charles viajou com um trio de músicos (guitarra, baixo e bateria), mais o empresário, seu secretário e um técnico para montar o equipamento. As mulheres responsáveis pelos backing vocals (as Raelettes) tiveram de ficar em Portugal. Bem como o piano de cauda e o conjunto de metais. Sem instrumentos nem cantoras, alguém disse que Ray pareceria um carpinteiro sem ferramentas.

Arranjaram um teclado Yama­­ha, daqueles cujas versões mais simples costumam aparecer em churrascarias, colocaram no centro do palco do Olympia, despido de qualquer adereço. Atrás do instrumento, estavam o baterista, o guitarrista e o baixista. Com a elegância que o caracterizava, o astro da soul music subiu ao palco conduzido por seu secretário carrancudo. Sentou diante do teclado – minúsculo em comparação com o piano que não estava ali – e, sem dizer palavra, lascou a instrumental "Blues for Big Scotia".

O público em silêncio, aplaudia obedientemente ao final de cada solo, mas não devia entender o que estava acontecendo. Cadê o resto da banda? Na segunda música, a jazzística "The Way You Look Tonight", ele começa a exigir do teclado tudo o que ele pode dar. Solando com vigor, entremeia seus acordes com "Ahs!" e "Ohs!", enquanto dança com as pernas (apesar de estar sentado) e se revira no assento.

O gelo do público não resiste ao calor de Ray e quando ele engata uma versão cheia de sentimento de "Route 66", com quase dez minutos de espetáculo, se ouve seu vozeirão pela primeira vez.

Na sequência, entram "A Song for You" e "Hallelujah, I Love Her So". Quando Ray diz "Georgia..." no microfone, a plateia uiva. Naquelas circunstâncias improvisadas, até um sucesso manjado como "Georgia on My Mind" soa fora do comum – tocado com um efeito bizarro no teclado, próximo do cravo.

Sem falar ao público nenhuma vez, colocou-o no bolso. Uma hora e dez minutos depois, você esquece que ele estava sem piano, sem Raelettes, acompanhado apenas pelo trio, este visivelmente tenso. O trio poderia ter ficado em Lisboa e Ray Charles ainda seria espetacular, sozinho com os efeitos estranhos do teclado eletrônico. GGGG

Serviço:

Ray Charles – Live at the Olympia. Som Livre, preço médio: R$ 35 (DVD) e R$ 26 (CD). Soul.

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