
A estreia ontem do Nosso Lar nos cinemas é um acontecimento cultural revelador. O filme de Wagner de Assis custou R$ 20 milhões (valor recorde no cinema nacional), não usou leis de incentivo uma proeza incrível para tal orçamento e ganhou 435 cópias espalhadas pelo país. Ele é mais caro e tomou conta de mais salas do que produções de sucesso como a comédia Os Normais 2 e a cinebiografia Chico Xavier. Esta fala, justamente, do médium mineiro que escreveu o livro Nosso Lar.
Na televisão, as telenovelas A Viagem e Escrito nas Estrelas, ambas produzidas pela Rede Globo, também lidavam com o assunto. Assim como a minissérie A Cura, com Selton Mello, ainda em exibição todas as terças-feiras.
Os livros espíritas são um sucesso vendem muito e por vários anos. Os autores se tornam referência e passam a ser procurados por uma legião fiel de leitores. Além de Chico Xavier, dá para citar a trajetória singular da escritora Zíbia Gasparetto.
Nos cinemas, na televisão e nas livrarias, a disposição de contar histórias ligadas à religião de Allan Kardec (1804-1869) reflete o apelo que o universo dos espíritos exerce sobre as pessoas e o fato de o Brasil ser o país mais kardecista do mundo informação destacada pelo professor Marcos Silveira, do curso de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
O espiritismo termo que surgiu em 1857 com a publicação na França de O Livro dos Espíritos, de Kardec sempre esteve ligado à publicação de livros, inclusive pela proposta de aliar discussões religiosas e científicas, o material e o imaterial.
"A literatura kardecista é um fenômeno à parte do mercado editorial convencional. Os espíritos ditam os livros, eles [os médiuns] têm editoras próprias e os preços são baixos. Essa utilização da mídia faz parte dessa cultura religiosa. É comparável com o uso que fazem os evangélicos e uma série de religiões orientais, em países como a Índia e o Japão", diz Silveira.
O kardecismo perdeu um tanto da força em seu país de origem, enquanto se fortaleceu no Brasil num caso sem igual. "Os espíritas brasileiros têm tido um papel preponderante na disseminação do espiritismo pelo mundo", diz Angélica A. Silva de Almeida, professora de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia em Juiz de Fora (MG).
"Outro aspecto que se pode considerar é que o kardecismo prospera, historicamente, num contexto de classes médias urbanas, que são letradas e têm interesse na literatura e nos filmes. São pessoas para as quais a religiosidade parece precisar ser expressa dessa forma um livro de orações em vez de rezas memorizadas oralmente, por exemplo. Enfim, é uma religiosidade que faz sentido em contextos modernizados e que acaba podendo ser percebida como uma modernização de cultos espíritas mais tradicionais", explica Silveira.
Angélica conta que a influência do espiritismo em território nacional está relacionada à força que a cultura francesa tinha por aqui no início do século 19 e à espiritualidade marcante da cultura brasileira, construída a partir de manifestações ibéricas, ameríndias e africanas.
É o que Simone de Oliveira, doutora em Ciências Sociais da Religião, chamada de "ambiente propício" para a fixação do espiritismo: a crença na comunicação com os mortos e na existência de seres espirituais.
"Considero que a proposta do espiritismo de explicar as relações entre os vivos e o futuro post mortem, de apresentar a possibilidade de várias encarnações para uma superação de si mesmo e a transformação em seres melhores, a busca por significados para as experiências que vivenciamos em especial aquelas ligadas ao sofrimento , sejam elementos atrativos da doutrina espírita por si mesma", diz Simone. "Na mesma linha, considero que o interesse pela literatura e/ou filmes sobre o tema também sejam pautados por essas questões, sendo uma forma de informação mais lúdica, esteticamente atraente e que não implica num comprometimento ou filiação propriamente dita ao espiritismo, a este ou aquele grupo."
De certa forma, a relação com o transcendente, ou com uma dimensão não material da existência, é uma das características próprias do ser humano. "Tanto que grandes obras de arte da humanidade, sejam elas artísticas, musicais ou arquitetônicas (catedrais, pirâmides), tiveram ao longo da História a sua inspiração em ideias e sentimentos espirituais", diz Angélica, que considera "natural" o interesse suscitado pelo espiritismo em filmes, livros e programas de tevê, algo que "sempre aconteceu".
Em parte, foi essa curiosidade do público pelo plano espiritual que levou o cineasta Wagner de Assis a querer adaptar o livro Nosso Lar, de Chico Xavier. Para ele, as ideias espíritas são "poderosas". "A fé [na vida após a morte] é uma maneira de procurar consolo, de saber que as pessoas foram embora, mas existem em algum lugar", diz o diretor e roteirista.





