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Ditadura em Pauta

Resquícios e controvérsias

A criação da Comissão da Verdade incitou novos debates no Brasil sobre o regime militar, discussão que havia desaparecido ao longo dos anos

Linha do tempo: Principais acontecimentos relacionados à história da ditadura brasileira. |
Linha do tempo: Principais acontecimentos relacionados à história da ditadura brasileira. (Foto: )
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O Que é Isso, Companheiro? |

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O Que é Isso, Companheiro?

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A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada e A Ditadura Derrotada |

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A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada e A Ditadura Derrotada

1968 – Ditadura Abaixo |

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1968 – Ditadura Abaixo

O período da ditadura militar (1964-1985) no Brasil voltou para a roda de discussão na sociedade brasileira: a posse dos integrantes da Comissão da Verdade na última semana – depois de seis meses da aprovação da lei – e os protestos de jovens, batizados de "esculachos", contra agentes ligados à ditadura na segunda-feira passada, são alguns exemplos de movimentos que trouxeram o assunto novamente à tona. Porém, analisando a opinião de especialistas consultados pela reportagem da Gazeta do Povo, é perceptível uma divisão de pensamento sobre a ação da presidente Dilma Rousseff. Há os que acreditam que rever e tornar pública essa história é essencial, e outros creem que esses acontecimentos fazem parte do passado, e a preocupação com os direitos humanos contemporâneos é mais urgente.

VÍDEO: Assista à entrevista com Carlos Marés, procurador do estado do Paraná, exilado durante a ditadura

Nesta semana, uma das integrantes da Comissão da Verdade, a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha, declarou não considerar impossível que o país reveja a Lei da Anistia (de 1979), que perdoou crimes políticos, possibilidade logo descartada pela própria presidente. O texto da lei foi considerado válido pelo Supremo Tribunal Federal em um julgamento em 2010, mas a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) não aceita a interpretação, e afirma que não é empecilho para que agentes sejam responsabilizados. "O Brasil deveria responder à OEA em um ano. Até hoje, nada foi feito", ressalta a psicóloga e vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais RJ, Cecilia Maria Bouças Coimbra.

Para ela, a lógica seguida dentro da Comissão da Verdade não será de punição, mas de responsabilização, interpretação apoiada pelo Tortura Nunca Mais. Entretanto, a entrega do relatório final (que será encaminhado ao Arquivo Nacional para integrar o projeto Memórias Reveladas), crê Cecilia, deveria ir ao Judiciário, acredita. "O que tivemos no período de 1964 até 1985 foi terrorismo de Estado, tortura como instrumento oficial do Estado brasileiro. A comissão não poder ir somente até a página 10 desta história."

Interpretação

Membro da ONG Desaparecidos Políticos, Criméia Alice Schmidt Almeida, que foi integrante da Guerrilha do Araguaia (movimento guerrilheiro na região amazônica, criado pelo Partido Comunista do Brasil) acredita que há uma leitura errônea na lei, de "autoanistia". "O ditador faz o que bem entende e depois faz uma lei para ficar anistiado. É cômodo". Segundo o professor de História Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná, que desenvolve uma pesquisa sobre filmes brasileiros que retratam o regime, os militares "tomaram o cuidado de impor uma lei que os pusesse a salvo de responder seus crimes em um futuro contexto democrático." Apesar disso, revisá-la ou aboli-la não é um bom caminho. "Isso pode revelar dois lados. Se for possível processar torturadores, também será possível processar membros da luta armada travada pela esquerda. A palavra anistia tem origem grega, e remete ao esquecimento. Em disciplina de História, nada poder ser esquecido. Mas, em uma sociedade complexa como a nossa, faz sentido não cultivar antigos ódios." Para ele, a comissão não deve avançar consideravelmente nas buscas. "A verdade está em livros, filmes e documentos há décadas. O tema é intensamente dramático, passional e muito provavelmente, será tratado de forma subjetiva."

Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ricardo Vélez Rodrigues é contrário ao fato de os nomes terem sido indicados pela presidente. "A verdade histórica é patrimônio da nação e não pode ser sonegada. Somente os regimes totalitários se arrogam o direito de reescrever a história. Mas, uma comissão instaurada pelo governo e com figuras nomeadas por ele, certamente não é a melhor forma de indagar." Já a cientista política, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em Justiça de Transição, Glenda Mezzaroba, é otimista. "A comissão fará um trabalho digno e edificante, tenho certeza que o relatório será tornado público, o texto da lei prevê uma ação conjunta com autoridades competentes. Esse descrédito me incomoda, é um pensamento que entra na lógica de impunidade da ditadura."

Sobras

A prática difundida da tortura, a truculência policial, a falta de transparência dentro de órgãos públicos e um certo esquecimento da história do governo repressor são alguns dos resquícios do regime que insistem em permanecer, e que deixaram no Brasil uma cultura de violência e impunidade. No artigo "Tortura e Sintoma Social", um dos textos do livro O Que Resta da Ditadura (Boitempo), organizado por Edson Telles e Vladimir Safatle, a integrante da Comissão da Verdade e psicanalista Maria Rita Kehl diz que o ressentimento ficou presente nas pessoas que recuaram sem lutar e perdoaram sem exigir reparação. E que o esquecimento da tortura é um "grave sintoma social no Brasil", o que reflete na repetição de barbáries. Para o filósofo Edson Telles, um dos organizadores da obra e que foi preso aos 4 anos de idade junto com os pais, militantes do Partido Comunista, a ditadura brasileira encontrou maneiras de se manter. "A estrutura das Forças Armadas e da segurança pública no Brasil é quase a mesma dos anos de ditadura. As PMs continuam agindo com truculência, sendo cotidianamente denunciadas por violações de direitos. Nossa polícia é a que mais mata civis na América Latina", salienta.

Telles lembra que há pouco tempo ainda havia uma lei de imprensa cerceadora, mas que o maior malefício deixado pela ditadura é a prática de tortura, "disseminada nas delegacias e presídios." Outra postura recorrente hoje que é vestígio da época, diz Glenda, são alguns clichês de que no regime militar não havia corrupção, ou que os direitos humanos "defendem bandidos". "É um legado e um ranço que existe, que ocorre porque não fizemos um trabalho de memória, patamar que irá mudar com a comissão. A corrupção existia na ditadura, mas não era conhecida, ao contrário da democracia atual." O tabu para falar do tema também permanece, sobretudo nas gerações que viveram o período. "Percebo que elas são temerosas e receosas. Só estamos conseguindo lidar com isso com a renovação das gerações."

A postura de alienação presente na época, sobretudo dentro da classe média, empolgada com o bom momento econômico, ainda é perpetuada. A despeito do debate recente, ao longo dos anos, o assunto frequentemente é deixado em um plano menor. O professor Dennison de Oliveira crê que essa atitude se deva a uma questão da escala – se compararmos o número de mortes no Brasil (cerca de 500), com os assassinatos no Chile (19 mil) e na Argentina (30 mil). "Felizmente, não ocorreu no Brasil a matança dos países vizinhos. Mas, para quem foi torturado, falar em ‘ditabranda’ é inaceitável. Mas, muito pior é comparar a ditadura com a atual ‘democracia’. Nunca antes o Brasil teve um problema tão grave de direitos humanos quanto hoje, com mortes pela PM, ocupação militar de áreas inteiras na infâmia das UPPs e UPS e imposição de toque de recolher, cínico desrespeito aos direitos legais do cidadão."

O procurador do Estado do Paraná e professor da PUCPR, Carlos Frederico Marés de Souza Filho, que ficou exilado durante 10 anos, diz que o Brasil não fez sua "lição de casa". Mas, que é melhor existir uma comissão que ele considera "tardia", do que nenhuma, e que o processo pelo qual o país passa, com a volta do assunto, ajudará o Brasil a reencontrar sua identidade. "Tivemos esse movimento no começo do século 20, com a Semana de Arte Moderna, mas a ditadura afastou. Nossa ditadura não foi mansa, e não devem ser usados eufemismos para falar sobre ela."

CADERNO G | 3:52

Carlos Frederico Marés de Souza Filho, procurador do estado do Paraná, conta como foi a juventude durante a ditadura e conta um pouco de como foi o período de exílio

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