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Homossexual, de família católica, Lúcio Cardoso encontrava amparo nas leituras de Pascal e Nietzsche, seu autores prediletos | Reprodução
Homossexual, de família católica, Lúcio Cardoso encontrava amparo nas leituras de Pascal e Nietzsche, seu autores prediletos| Foto: Reprodução

Esperada há muitos anos pelos leitores de Lúcio Cardoso, será lançada no próximo mês a edição dos diários do escritor, organizada por Ésio Macedo Ribeiro, que esclarece ser uma edição anotada e não crítica. Agora com o título de Diários (Civilização Brasileira), a obra é um presente para os leitores do escritor mineiro. A última edição do chamado Diário Completo é de 1970 e já pedia complementação de inéditos, como O Diário 0, Diários I e II, revistos, Diário de Terror, Diário Proibido — Páginas Secretas de um Livro e de uma Vida, Produção e Prece, Livro de Bordo e os Diários Não Íntimos (De 30 de Agosto de 1956 a 14 de Fevereiro de 1957).

Ao mesmo tempo, chegarão também contos inéditos do autor reunidos em Contos da Ilha e do Continente, organizado por Valéria Lamego, que confessa ter realizado obra de detetive. No prefácio, ela escreveu uma longa explanação mostrando que encontrou os textos nos mais diversos tipos de situação: contos que eram pedaços de novelas; contos que já tinham sido publicados muitos anos antes e trocado de título; e mesmo contos sem pedaços inteiros.

Duas coisas foram de suma importância no trabalho realizado por Valéria: conhecer bem a obra de Lúcio e ter acesso aos periódicos do período entre 1930 e 1950. Porém, é claro, há contos que não foram publicados e nem foi intenção da organizadora resgatar uma obra completa, mas mostrar o Lúcio Cardoso contista que nunca foi lido nos últimos 60 ou 70 anos. Na bela introdução aos Contos da Ilha e do Continente, em que comenta e analisa os escritos cardosianos, Valéria também faz uma gênese do estilo do escritor, desde suas histórias regionalistas até Lúcio renegá-las e partir para outras vias literárias. Nos contos notei uma boa dose de sentimentalismo que, futuramente, o escritor vai controlar, quando relata os dramas pungentes que aparecem nos romances e o tom mais racional de seus Diários.

A edição dos Diários Completos de 1970 já era leitura imprescindível para quem queria conhecer a vida escrita de Lúcio Cardoso, aquela que se entrelaça à obra, revelando um estilo, a marca da letra do escritor, seus traços, sua vida. Andrea Vilela, sobrinha-neta de Lúcio, numa tese de doutorado já mostra como o bordado da vida se desenha na obra cardosiana, como as pinturas reverberam nesses textos luminosos, pela paixão da escrita que os move. Em O Diário O, vemos um escritor inquieto com suas questões religiosas, literárias e pessoais. Nesses escritos, dialoga com autores como Bernanos, Leon Bloy, Dostoievski, Rimbaud, Tolstoi, Santa Teresa, São João da Cruz, Nietzsche e Freud, entre outros. Como grande leitor que foi, abriu-se a questões filosóficas que sempre o atormentaram pela vida afora, questões que reaparecem em seus contos, romances e poemas.

Entretanto, Lúcio Cardoso não foi um filósofo, tal como entendemos esta categoria, apesar de afirmar "percebo que sou apenas filósofo", pois seu texto espirala-se, tropeça, lança dúvidas, de repente muda de tom. Em meio a divagações contraditórias, escreve algo como "Chateação universal, chateação de tudo que existe ou não existe, mas pode existir. Obrigação de ser, de querer ou não querer, de poder ou não poder, etc, etc, etc". Avassalado por palavras vindas de dentro e de fora, dos livros, das pessoas, de sua própria inquietude sem solução, confessa: "Não tenho autoridade para escrever e escrevo sobre coisas a respeito das quais não se escreve".

No meio de uma avalanche de questões que o torturam, num vaivém, endereça perguntas a seus escritores prediletos, como Pascal e Nietzsche, e aos livros do Antigo Testamento, tentando entender as leis, a verdade, o sofrimento humano, cujos enigmas dariam apoio a ele próprio e ao ser humano.

O que chama de apoio seria a contrapartida ao desamparo humano que busca insistentemente resolver, como a fé e a ciência, num diálogo às vezes irreverente, às vezes desesperado, como é o de quem luta com sua fé e seu ceticismo, agarrando-se sempre à primeira. Seu pensamento se constrói por fragmentos, por aforismos, às vezes contraditórios ou paradoxais. O escritor estava consciente de certa desordem, apesar de dizer-se filósofo: "Quem me lê deve ter uma sensação de ida e volta, de confusão, de barafunda. Não tenho estética em clareza cartesiana, nem mesmo clareza pascalina. Gosto porém de não possuir um estilo ‘mais bem acabado’".

Homossexual, de família católica, o escritor prende-se nas teias de sua arraigada noção de pecado, sem conseguir extrair-se do rígido sistema que é a Igreja Católica. Enquanto procura suas respostas, mostra o quanto as leis, as regras, a teologia não o abandonam, sendo questões onipresentes e persecutórias em sua vida e em sua obra.

Ruth Silviano Brandão é professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora visitante sênior da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP/CNPq), tradutora e autora de Lúcio Cardoso — A Travessia da Escrita.

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