A literatura e especialmente o romance, sua forma mais nobre há muito parece ameaçada de irrelevância. Mais do que isso, o lugar do escritor, outrora figura tão influente, tem sido muito questionado: segundo certo senso comum, com o bombardeio de informações dos dias de hoje, ninguém mais estaria interessado em grandes livros (principalmente se forem livros grandes...) supostamente capazes de elucidar a época em que vivemos.
Mas eis que ressurge, nos Estados Unidos, a figura do "grande escritor", "consciência da nação" (ou "antena da raça", conforme definiu um poeta, certa vez), com um muito esperado romance apenas o segundo de sua lavra em quase duas décadas a que um jornal, lá fora, pespegou o elogio de "livro do século".
Trata-se de Liberdade, de Jonathan Franzen seiscentas páginas formando um vasto painel da América atual, pós-11 de Setembro, traçado basicamente a partir da trajetória dos quatro Integrantes da família Berglund e agregados. O lançamento, com ares de verdadeiro acontecimento literário mundial, levou o autor à capa da revista Time. E isso depois de o romanção ter sido flagrado na cabeceira do presidente Barack Obama, aparentemente um de seus primeiros leitores. Para coroar, acabou virando também sucesso de vendas, um autêntico best seller.
Liberdade, recém-lançado no Brasil, levou muita gente a se perguntar se a literatura de ficção e os próprios escritores não estariam retomando a posição de influência que algum dia já tiveram. No caso de Franzen, a pergunta parece fazer ainda mais sentido: seu livro anterior, As Correções outras seiscentas páginas no mesmo estilo mural de uma época, aqui os anos 80 e 90, desta vez no microcosmo da família Lambert , já arrebatara por igual críticos e leitores, em rara comunhão, sem falar da repercussão na mídia e nos círculos de poder que agora, com Liberdade, chega ao auge.
Oráculo da atualidade
Os primórdios desse amplo alcance social do romance são apontados pela professora Thais Manzano no recém-lançado E Se a Literatura Se Calasse? (Ed. Terceiro Nome): "Esse fruto temporão entrou em cena muito depois do épico, da poesia lírica e do teatro, os gêneros 'respeitáveis' da história da literatura, reverenciados desde seu aparecimento. Foram necessários séculos para que viesse à tona sua vocação, a da voracidade crescente. Pois, ampliando seus recursos, o romance passou a abocanhar cada vez mais dados da realidade e a mergulhar, sem receios do que encontraria, nos abismos humanos".
Já o crítico inglês Ian Watt, autor do clássico estudo A Ascensão do Romance (Cia. de Bolso), lembra que "os enredos da epopeia clássica e renascentista [...] baseavam-se na História ou na fábula". "O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo", escreve Watt, "partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual a qual é sempre única e, portanto, nova. Assim, o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade."
O romance é (ou foi), portanto, a arena dos debates contemporâneos e não se pode esquecer da importância da imprensa do século 19 para a popularização das ficções longas, publicadas em capítulos nos jornais. Ao lado da notícia, vinha a imediata reflexão sobre o mundo de então o romance se transformava nessa espécie de oráculo da atualidade; se não explicava, ao menos fazia pensar a condição do homem, agora homem moderno. O romance é, na literatura, expressão da modernidade.
"Impasses"
Watt atribui a grande virada representada pelo gênero, em relação à ficção anterior, àquilo que descreve como "realismo formal" no romance procedimentos técnicos (caracterização detalhada dos personagens, delimitação específica de tempo e espaço das narrativas) que, em última análise, conferiram aos romancistas credibilidade como comentaristas privilegiados de suas sociedades. O que sobra para a literatura, porém, quando o comentário sobre a atualidade se tornou um quase-monopólio dos meios de comunicação?
"Não está aí, a literatura, para nos colocar a par do que se passa. Uma diferença ou uma perspectiva: o romance, a novela, o conto informam outra coisa que não o estado momentâneo das coisas", é a resposta de Sérgio de Sá, jornalista e professor, na tese de doutorado que publicou em livro no ano passado com o título de A Reinvenção do Escritor. "A literatura, eis a hipótese principal, talvez ofereça modos de manejar a intensa circulação de informações proposta pelos meios de comunicação de massa", resume Sérgio.
"O que ela faz é questionar o ser e o estar no mundo, refletindo sobre nossas condições existenciais e históricas", ecoa Thais Manzano. Mas, em seguida, pondera: "O problema é que as formas inovadoras de cumprir essa tarefa parecem esgotadas". De fato, o romance muito se transformou a partir de suas pioneiras investidas realistas sobre o mundo moderno, até chegar a ser pós-moderno: em suma, ainda um comentário sobre a sociedade à sua volta, mas agora frequentemente irônico (dizendo uma coisa para significar outra, portanto menos convincente em seu pretenso realismo) e, ao mesmo tempo, cada vez mais afeito às experimentações de linguagem (para o leitor comum, um obstáculo no acesso a uma visão diferenciada, supostamente privilegiada, do mundo em redor).
Daí se falar numa crise da ficção ou, conforme o subtítulo do livro de Thais Manzano, nos "impasses do romance".
Para a autora e as expressões são dela a "desumanização dos personagens", a "rarefação da literatura" como a conhecíamos, representação de certa realidade, não é um caminho sem volta: "Na medida em que a cultura ocidental encontrar caminhos para sair de sua crise, a literatura os refletirá", diz. "Basta lembrar que o gênero romance desapareceu durante séculos no Ocidente e retornou para se tornar o mais experimental e o mais apreciado pelo público."



