
Moda é arte? Os puristas que nos perdoem, mas a resposta é que pode ser, sim. Desde que a roupa em questão vista o corpo e a parede. Há muito tempo a moda vem se reforçando como vetor de expressão e transformação econômica, histórica, antropológica e cultural. Essa complexidade é justamente o que complica ainda mais, na opinião do estilista mineiro Ronaldo Fraga, a percepção do público brasileiro, acostumado a ver a moda como a segunda indústria que mais emprega no país perde só para o setor alimentício. Sem contar que, por aqui, a moda é jovem demais.
"Em algumas mãos, ela funciona como vetor artístico. Mas não é qualquer desfile, qualquer roupa que pode ser encarada como arte. É preciso comunicar, retratar um grupo, resgatar a história, protestar. A arte se presta a isso", comenta Fraga. Ele mesmo sempre conduziu o seu trabalho pelas reentrâncias da cultura nacional, dos criadores sem nome, dos artistas conhecidos. Mas nem por isso se autointitula artista plástico. "Sou estilista. Meu instrumento é a moda. A face dela que me seduziu é a transformadora e que se presta à apropriação cultural. Por isso, admiro tanto quem tem também uma carreira nesse perfil, como os estilistas das escolas japonesa e belga. Yohji Yamamoto, Issai Miyake são artistas. É emocionante assistir a um desfile de 30 anos de carreira de um cara desses e ver sempre o novo dentro do repertório", explica. Mas o novo, diga-se de passagem, nem esbarra em tendências.
Roupa vira arte quando ultrapassa o simples vestir, faz pensar e provoca a admiração. "Não é uma admiração pelo belo, simplesmente. Mas pelo estranho, pelo transformador, pelo inusitado. Um bom exemplo foi o vestido de carne usado pela Lady Gaga, assinado pelo designer Franc Fernandez. Transformar carne em roupa pode ser uma expressão artística", diz o estilista curitibano Fábio Bartz. Alexander McQueen, segundo Bartz, sabia como transformar tecidos em obras de arte. Jean Paul Gaultier também. "O reconhecimento dos grandes museus ao abrirem exposições de estilistas já é um passo para a aceitação da arte na moda. O próprio Jean Paul está indo para dentro do museu."
O estilista (ou seria o artista?) se apropria do vestuário como o prolongamento de suas pesquisas e para integrá-lo em sua visão da sociedade contemporânea. E a relação direta com a experiência cultural e, digamos, antropológica parece fascinar os criadores contemporâneos.
"Arte por excelência de compromisso, o traje não existe independentemente do movimento, pois está sujeito ao gesto, e a cada volta do corpo ou ondular dos membros é a figura total que se recompõe, afetando novas formas e tentando novos equilíbrios. Enquanto o quadro só pode ser visto de frente e a estátua nos oferece sempre em sua face parede, a vestimenta vive na plenitude não só do colorido, mas do movimento", escreveu, em 1950, a filósofa, crítica literária, ensaísta e professora universitária Gilda de Mello e Souza, em O Espírito das Roupas: a Moda no Século 19.
Objetos de arte e objetos de moda, portanto, viram o reflexo de seu tempo e de sua sociedade, por apresentarem os mesmos elementos de composição visual, formas, linhas, cores, volumes e texturas. "Deste modo, costureiros e designers se apropriam das referências artísticas para imprimir expressões da arte recriando e estilizando formas, inovando materiais, promovendo interferências e técnicas para atender à demanda de consumo na moda. Assim também personificam sua marca criativa", diz Heloisa Pontes, professora do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, ambos da Unicamp, em seu artigo Modas e Modos: uma Leitura Enviesada de O Espírito das Roupas.
Ela ainda qualifica a moda como a mais viva de todas as artes, junto da pintura, da escultura e da arquitetura, que encontram na forma seu veículo de expressão. "A moda é forma. Valendo-se da materialidade dos tecidos, o costureiro enfrenta desafios análogos aos dos artistas em geral, ao lidar com as seguintes dimensões estéticas: forma e cor. Mas, diferentemente dos demais artistas, o seu grande desafio é a mobilidade. Não por acaso, uma das últimas dificuldades a serem resolvidas na história do vestuário. Diferentemente das outras artes, a vestimenta só se completa no movimento", escreve.
Futuro
Se no velho mundo a moda já esteve em museus e o próprio público consome roupa com uma espécie de consciência cultural, por aqui, ela teve uma conquista. Há um ano existe um conselho que defende os interesses do setor junto ao Ministério da Cultura. "Estamos partindo do zero nesta implantação da câmara de moda no Ministério, cujas diretrizes básicas são a defesa da memória, pesquisa, exposição e capacitação. O resultado disso é que hoje a moda está em pé de igualdade com outras expressões artísticas, até, por exemplo, para conseguir emplacar seus projetos na Lei Rouanet", diz Ronaldo Fraga, que faz parte do conselho. "Isso tudo começou com as discussões sobre economia criativa, que é uma das principais apostas do governo Dilma Roussef."



