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Saldos de guerra

Ecos do conflito bélico do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, o mais sangrento na história da América do Sul, são audíveis até hoje

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Governo paraguaio espera a devolução do canhão Cristão (El Cristiano), hoje no acervo do Museu Histórico Nacional, do Rio de Janeiro |

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Governo paraguaio espera a devolução do canhão Cristão (El Cristiano), hoje no acervo do Museu Histórico Nacional, do Rio de Janeiro

Ao tomar de empréstimo um excerto do poeta inglês John Donne para titular sua obra mais famosa, Ernest Hemingway quis dar força uma vez mais à assertiva de que a morte de qualquer homem nos diminui a todos, pois somos todos parte da humanidade. "Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti", proferiu Donne. A frase, usada pelo escritor norte-americano ao retratar a Guerra Civil Espanhola (1936-39), se presta em alguma medida a também explicar os arranjos sociais e territoriais da América do Sul depois de seu maior conflito bélico. Nada segue como antes, mesmo para o vencedor. Que o diga o Brasil, ainda hoje saldando as dívidas morais dessa guerra.

No capítulo dos sinos, 140 anos depois o país derrotado reivindica os últimos repiques aos seus cadáveres insepultos. Corria o ano de 1868 e, no auge do embate que redesenhou fronteiras e forjou culturas, os sinos se calaram. A 19 de fevereiro, tropas brasileiras conquistaram seu maior troféu na Guerra do Paraguai (1864-1870), o canhão Cristão (El Cristiano), um gigante de 12 toneladas, 2,94 me­­tros de comprimento e 1,34 metro de largura feito do bronze e do ferro de sinos retirados de igrejas paraguaias. De nada valeu o derradeiro esforço paraguaio para fazer frente à superioridade da Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai.

O conflito duraria ainda dois anos, mas já não havia sino para dobrar por aqueles que tombaram em batalha. A quietude se abateu sobre os mortos, número incerto que teria chegado a dois terços da população paraguaia.

Só recentemente os ecos da guerra, antes perdidos em algaravias, enfim ficaram audíveis. "O país nunca vai cicatrizar a ferida se o Brasil não devolver o arquivo militar e o canhão Cristão", disse em março o vice-presidente, Federico Franco, durante as comemorações dos 140 do fim do conflito. Ainda não há data marcada, mas o governo brasileiro está providenciando a devolução de El Cristiano, exposto no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. O pedido revela alguns dos perenes efeitos residuais dos conflitos armados sobre um povo.

"Uma guerra constitui referente dramático presente inclusive na vida de quem dela não tenha participado, mas expressa a continuidade histórica daqueles que plasmaram com seus atos sua história coletiva como nação", analisa o sociólogo paraguaio José Nicolás Morínigo. No caso do Paraguai, a luta armada significou uma perda significativa de população e de áreas geográficas, além de marcar o fim de um modelo político baseado no desenvolvimento ensimesmado. No período pré-guerra, o ditador Francisco Solano López fechou o país para forjar o crescimento de dentro para fora num momento em que o mundo começava a se abrir para a globalização.

No caso paraguaio, o pesar decorrente de algo que trouxe tantos danos formou parte da história do país e foi elemento chave na formação histórica da sua cultura. "É um erro pensar em construir o futuro voltado exclusivamente para o passado, mas na cultura política paraguaia o presente se vive muito mais com base na leitura do passado do que com base num projeto para construir o futuro", diz Morínigo. A percepção também foi afetada no outro lado da fronteira. O brasileiro, consciente ou não, expressa como coletividade uma visão equivocada a respeito do Paraguai. "O país não pode ser considerado um estado na concepção federativa do Brasil, mas como um estado soberano."

A inquietação de Morínigo reflete o sentimento nacional. O Paraguai completa hoje, 15 de maio, 199 anos de independência. Mas o país que primeiro se insurgiu contra o jugo espanhol viveu a maior parte dos seus dias sob o manto do autoritarismo interno, desvelado vez ou outra por espasmos democráticos, e parece ainda não ter se livrado da dependência externa. Por uma ironia histórica, os três países que há 140 anos o devastaram são os que hoje o mantém economicamente de pé. O Brasil, em particular, tem para com ele uma atitude ora de tutor, ora de colonizador, dando por vezes a impressão de tê-lo como seu 27.º estado federativo.

A dependência paraguaia é anterior com a Argentina, remontando à época em que terras públicas paraguaias eram vendidas na bolsa de valores de Buenos Aires (1885), mas é com o Brasil a maior diversidade de relações, intensificadas nas últimas cinco décadas. Começou com a construção da Ponte da Amizade, prosseguiu com migração massiva de colonos brasileiros para desbravar a fronteira leste paraguaia e culminou com a construção da Itaipu Bina­cional, a mais cara dívida de guerra. Do lado de cá da fronteira, no entanto, o Paraguai é mais conhecido por ser o maior entreposto de mercadorias que entram de contrabando no Brasil.

O ressentimento paraguaio por causa da guerra ainda existe, mas é maior em relação ao argentino. Aos portenhos cabe um ódio ancestral, a quem os paraguaios chamam pejorativamente de curepi, ou couro de porco, alusão às botas feitas com o couro desse animal e usadas pelos argentinos, associando-as à sua pele branca e rosada.

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