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Personagem

Salvo pelo bandoneon

José Antônio Scholtz superou a vergonha de tocar na rua para retomar o gosto pela música – e pela vida – depois dos 70 anos

Obrigado pelo tango: de duas a quatro horas por dia, seu Zé do Bandoneon se apresenta pela cidade e consegue entusiasmar pessoas que depositam notas de R$ 2, R$ 5 e até R$ 10 no cofre verde do instrumentista | Irinêo Baptista Netto/Gazeta do Povo
Obrigado pelo tango: de duas a quatro horas por dia, seu Zé do Bandoneon se apresenta pela cidade e consegue entusiasmar pessoas que depositam notas de R$ 2, R$ 5 e até R$ 10 no cofre verde do instrumentista (Foto: Irinêo Baptista Netto/Gazeta do Povo)

Seu Zé do Bandoneon vivia uma época difícil em que a vida parecia só uma sequência de dias vazios. A sensação de que não há mais nada a fazer, nenhum trabalho, nenhuma vontade. Pelo que ele deu a entender, era uma tristeza paralisante.

Assista ao videoclipe do seu Zé do Bandoneon interpretando ?Por una Cabeza?, de Carlos Gardel, no meio da Rua XV de Novembro

Em 1998, muitos já associavam José Antônio Scholtz ao bandoneon, mas ele ainda não tinha adotado o instrumento como sobrenome. Estava com 74 anos, sentia vontade de tocar na rua e a única coisa que o impedia era a vergonha. ?Eu não sabia se podia tocar... Nem como?, diz com a voz suave e baixa, às vezes inaudível em meio ao barulho da rua.

Seu Zé tem ascendência alemã e italiana. Seus pais nasceram no Brasil, mas é estranho perceber como o músico fala com um leve sotaque de imigrante, pronunciando bem os eles e os dês, como em ?10 mil CDs? ? a quantidade de discos que calcula ter vendido em 12 anos se apresentando nas ruas de Curitiba.

Ele estava triste, chegou a consultar médicos, até conhecer um ex-policial militar que desfrutava da aposentadoria tocando saxofone na Praça Santos Andrade. Os dois se entenderam rápido e combinaram de se apresentar juntos na feirinha do Largo da Ordem. Cândido ? seu Zé não lembra o sobrenome ? morreu três anos depois.

Com alguns fins de semana tocando em dupla, eles perceberam que poderiam fazer mais dinheiro se se dividissem. Assim seu Zé perdeu a vergonha e reencontrou o gosto pela música, um bom motivo para levantar da cama todas as manhãs. ?Não consigo ficar parado, tenho que fazer alguma coisa?, diz.

Na rua, o efeito da música produzida pelo bandoneonista é incrível: pessoas depositam notas de R$ 2, R$ 5 e até R$ 10 no cofre improvisado ? uma bolsa maleável verde com uma fenda cortada na tampa. Talvez tenha algo a ver com os tangos que sabe tocar bem, embora sua modéstia não o deixe pensar assim.

Este repórter havia ouvido seu Zé do Bandoneon perto da Boca Maldita, local onde se apresenta aos sábados. Conversou com o músico e combinou a entrevista que aconteceu na tarde da última quarta-feira.

Entre os lugares em que costuma tocar, estão a feira do Largo da Ordem e a Rua XV de Novembro, quase na esquina com a Barão do Rio Branco. No dia da entrevista, um grupo de argentinos chamado El Metodo chegou lá antes do seu Zé. Violão, baixo, bateria, teclado, bandoneon e violino atraíam a atenção do público com tangos enérgicos e um repertório que incluía Astor Piazzolla.

Seu Zé ficou impressionado com a banda e elogiou o bandoneonista. ?A gente fica sentido, né??, comentou pouco depois.

?Sentido por que, seu Zé??, foi a pergunta óbvia.

Com a voz ainda mais baixa que o normal e olhando para os lados, como quem vai revelar um segredo, ele respondeu: ?Fica sentido porque não tem a mesma capacidade?.

Aos 14 anos, quando ainda morava no Rio Grande do Sul ? ele nasceu em Farroupilha e foi levado ainda bebê para Palmeira das Missões ?, viu o pai chorar depois que um incêndio destruiu todo o maquinário que usavam para produzir farinha de mandioca. Era o ganha-pão dos Scholtz.

Então largou tudo, a escola e a música, para trabalhar e ajudar a reconstruir o moinho. Seu Zé não tinha como tocar o serviço e o bandoneon, ainda que às vezes acordasse de madrugada para praticar um pouco.

A música corria no sangue da família. O pai era cantor e comprou o primeiro instrumento para o filho, importado da Alemanha, como um presente que ele deveria usar para ganhar uns trocados animando festas da região.

O casamento do seu Zé ocorreu em 1947, mesmo ano em que acabou vendendo o bandoneon ?para se ver livre?. Não conseguia levar as obrigações como pai de família e também se dedicar à música. Havia comprado uma propriedade que exigia tempo e trabalho, ficando impossível atender as pessoas que pediam para tocar em diversas ocasiões. Em certa medida, era uma experiência angustiante.

Viveu duas décadas sem música.

Em 1967, já morava no Paraná quando visitou o cunhado e encontrou um conhecido deste que estava vendendo um bandoneon fabricado no Brasil. ?Novinho, lindo?, lembra. Ele fechou negócio no dia seguinte e carrega o instrumento consigo até hoje.

Seu Zé tem um repertório grande e eclético que sabe de cor. Por causa da vista, não consegue mais estudar partituras. Se quiser ler este texto, por exemplo, terá de apelar para uma lupa, algo que não o anima.

Ele toca de tudo, inclusive Beatles, e sua versão de ?Ob-la-di, Ob-la-da? é divertida. Porém, nenhuma música parece mais certa para o bandoneon do que o tango. Não interpreta Piazzolla porque o considera difícil, mas faz belas leituras de Carlos Gardel: ?El Caminito?, ?El Dia Que Me Quieras? e, a melhor de todas, ?Por una Cabeza?, que embalou o personagem cego de Al Pacino no filme Perfume de Mulher.

Salvo pelo bandoneon

José Antônio Scholtz superou a vergonha de tocar na rua para retomar o gosto pela música – e pela vida – depois dos 70 anos

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