• Carregando...
Sertanejo universitário: a dupla Victor e Léo representa a nova geração | Divulgação
Sertanejo universitário: a dupla Victor e Léo representa a nova geração| Foto: Divulgação
  • Rolando Boldrin é um dos maiores divulgadores da cultura caipira no país

Consta que, nos anos 1950, o povo se espantava com a imensidão das posses e conquistas dos irmãos Pérez. Só por baixo, diziam, eram 27 automóveis e um avião. E quem duvidava? Na época, ninguém podia mais que eles. Nesse sentido, os números daquela dupla caipira do interior de São Paulo sempre deram margem a especulações do gênero. São índices bastante expressivos: em mais de meio século de carreira, lançaram quase 1,5 mil canções, em cerca de 200 LPs, CDs, compactos e discos de 78 rotações, e venderam 50 milhões de cópias.

Durante décadas, ele comandaram um megassucesso do rádio nacional, o programa Na Beira da Tuia. Produziram seis longas-metragens e promoveram aproximadamente 15 mil shows. Mantinham uma fábrica de violas no Paraná, onde empregavam 60 funcionários. Famosos por sua teimosia, não admitiam o som de guitarras ou sintetizadores em seus álbuns – e nem nos alheios.

Certa vez, convidados por Chitãozinho e Xororó para uma regravação de "Chico Mineiro", impuseram a condição irrevogável: não cantariam, em hipótese alguma, sobre arranjos banais de teclado eletrônico. Tinha que ser tudo na base do violino. E assim foi feito.

Tempos idos. Hoje, Chitãozinho e Xororó já são vistos, por boa parte do público jovem e de classe média, como artistas "de raiz". João Salvador Pérez, o Tonico, morreu em 1994, logo após o auge da onda sertaneja romântica de então, em parte impulsionada pelas políticas populistas do governo Collor. E José Pérez, o Tinoco, aos 88 anos enfrenta seus dias mais difíceis, de pouquíssimos shows e minguadas oportunidades. Dinheiro de direitos autorais é artigo raro, miudeza. Assim, para bancar o tratamento de saúde de sua esposa, Dona Nadir, que luta contra um câncer no pâncreas, o músico está rifando um Gol 98 MI. O sorteio acontece no próximo dia 9 de maio, pela Loteria Federal. E cada um dos mil bilhetes disponíveis, vendidos no site de Tinoco (www.tinocodobrasil.com.br), custa R$ 50.

Para a cantora e jornalista Rosa Nepomuceno, autora do livro Música Caipira: da Roça ao Rodeio, o caso de Tinoco é especial, assim como o de outros grandes artistas de outrora – o lendário compositor João Pacífico, por exemplo, morto em 1998, também amargou graves problemas financeiros na velhice. "Não se ganhava o montante de dinheiro que, hoje, o showbiz traz", diz Rosa. "Além disso, pelas restrições próprias da sua idade e do mercado, o Tinoco não encontra mais espaço para trabalhar." A solução, de acordo com a pesquisadora, até poderia ser simples. Bastaria, aos departamentos de cultura brasileiros, que o prestigiassem. "O Tinoco é uma entidade. Deveriam abrir espaços próprios para ele, juntando-o a artistas mais jovens."

Tudo vale

Hugo Pena, paranaense de Nova Fátima, tem 29 anos. É jovem e bem-sucedido. Ao lado do maringaense Gabriel, forma uma das duplas mais promissoras do chamado sertanejo universitário, atração de ponta do Curitiba Country Festival – evento que acontece hoje, na Arena Expotrade. Ele lamenta a situação de Tinoco e pensa que as novas gerações têm a obrigação de ajudar. E não somente em relação ao caso específico de Tinoco. Refere-se à música caipira de uma forma geral, ampla.

"O mundo se transformou muito, e a música sertaneja fala de cotidiano e de amor", explica. "Estão perdidos o campo e o homem do campo, a música que fala da terra e do gado." Para Hugo Pena, cada vez mais pessoas viverão em cidades cada vez maiores. Por isso, faz uma previsão pessimista: "Acho que, no futuro, essa música de raiz vai acabar. Mas nós, músicos, não podemos deixar isso acontecer."

Sim, preservar é ponto pacífico; como preservar é que é a questão. E a discussão decorrente disso não é nova. Discorrendo sobre o sertanejo universitário, Rosa Nepomuceno o descreve como mais um nicho musical forte que junta a tradição regional aos sons pop. "É uma forma de ‘atualizar’ o rural, preservá-lo e lhe dar novos acentos", defende. "Tudo vale. Segmentar gêneros e discriminar uns para valorizar outros é que é coisa do passado."

Concorda com ela o músico e pesquisador Ayrton Mugnaini Jr., autor da Enciclopédia das Músicas Sertanejas, totalmente avesso a purismos de qualquer espécie. "Sou a favor de combinações de gêneros diferentes por ecletismo ou mesmo em nome do humor", diz. "Apenas não gosto muito de diluições e simplificações excessivas ou mal elaboradas, geralmente a bem do comércio."

E talvez seja este mesmo o xis do problema: o (já manjado) interesse exclusivamente comercial por trás das nossas paradas de sucesso. "A tal música sertaneja de alto consumo se serve da influência de músicas estrangeiras e de temas apelativos", protesta o "cantador" e compositor Rolando Boldrin. Um dos maiores divulgadores da cultura caipira no país, Boldrin é conhecido por ser bastante conservador em relação ao assunto. Nos anos 80, chegou a barrar o cantor Sérgio Reis no programa Som Brasil, da Rede Globo, comandado por ele, só porque o astro pretendia se apresentar vestido de caubói.

Sobre o sertanejo universitário, Boldrin alega nem saber do que se trata. E sobre o sertanejo moderno, confessa ter suas "legítimas ressalvas, com pitadas de preconceito". "Não posso deixar de repudiar seu sucesso na mídia", admite. De qualquer maneira, é curioso notar que o jovem Rolando, louro e de olhos azuis, começou sua carreira como o Boy, da dupla Boy e Formiga. O pseudônimo foi inspirado pela paixão de seu pai por filmes norte-americanos de faroeste, em especial os estrelados por William Boyd.

Isso, de certa forma, expõe a imensa relatividade que permeia essas querelas. O que caracterizaria o elemento regional em uma cultura? A matéria original forjada em cada região do mundo? Ou a forma original por meio da qual diversas matérias são misturadas pelo povo de um país, seja no campo, seja na cidade? E que futuro, afinal, terá a música sertaneja em um planeta sem sertões?

Para o músico César Menotti, o Brasil é um país sertanejo. Por isso, a música sertaneja há de permanecer. O mesmo vale para a música de raiz. "As pessoas que realmente gostam dela a defendem com amor", afirma. "Mas ela não é uma música de evidência na mídia. Mesmo porque, no nosso país, tudo que envolve cultura é difícil de vender."

Serviço

Curitiba Country Festival. Arena Expotrade (Rodovia Deputado João Leopoldo Jacomel, 10.454, Pinhais). (41) 3661-4000. Dia 28, a partir das 18h45. Abertura dos portões às 15 horas. Informações sobre programação e ingressos no site www.countryfestival.com.br

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]