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A lápide diz "Eric Arthur Blair"

Tarefa das mais difíceis, separar a vida do escritor George Orwell de sua ficção. Nascido na Índia em 1903, em meio a uma decadente aristocracia britânica, recebeu o nome de Eric Arthur Blair. Mas abandonou tudo: o status, o dinheiro, e até o nome, para se aventurar no mundo sob o pseudônimo que o tornaria célebre e que faria de sua própria vida a maior ficção de todas. Blair, ou melhor, George Orwell, teve uma vida agitada: foi policial na Birmânia (atual Miamar), conviveu com trabalhadores braçais de minas e portos ingleses, passou fome e frio em Londres, onde morou nas ruas e em abrigos para sem-tetos e lutou na Espanha, durante a guerra civil de 1936.

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Por fotos, George Orwell parecia ser alto, muito magro e extremamente britânico. Um John Cleese das letras – a referência só vai fazer sentido para quem conhece o comediante inglês que integrou o grupo Monty Python. Para o ensaísta Christopher Hitchens, Orwell era "magricela mas divertido, altivo mas de modo nenhum vaidoso".

O autor de 1984 costuma aparecer em listas dos livros mais importantes do século 20, mas, ao menos para o crítico literário Harold Bloom, ele não faz parte do cânone ocidental. E também não foi um gênio. Bloom não está só. Outro crítico, também dos Estados Unidos, observou que Orwell não era um escritor extraordinário, porém sabia ser modesto como ninguém.

"Se perguntarmos o que ele [Orwell] representa, do que ele é modelo, a resposta será: a virtude de não ser um gênio, de arrostar o mundo com nada mais do que sua inteligência simples, direta, não iludida, e um respeito pelas capacidades que possui e pelo trabalho que se propõe a fazer (...). Ele não é um gênio – que alívio! Que incentivo. Pois ele nos transmite a ideia de que o que ele fez qualquer um de nós poderia fazer", afirmou Lionel Trilling.

Numa tentativa de organizar o legado do escritor, rebatendo críticas infundadas e chamando atenção para elementos de sua obra que a maioria desconsidera – os seus textos de não-ficção –, o ensaísta Christopher Hitchens escreveu A Vitória de Orwell, publicado no Brasil pela Companhia das Letras no ano passado. A mesma editora está reeditando todos os títulos de Orwell e prepara, para maio, o lançamento de Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios.

Hoje, Hitchens saiu de cena para tratar um câncer no esôfago que deve matá-lo em cinco anos (são palavras do próprio autor, comentando as estimativas médicas). Polêmico comentarista político e religioso, ele é também um crítico literário de personalidade, escreveu tanto Deus Não É Grande quando Amor, Pobreza e Guerra, ambos pela Ediouro. O título do segundo faz uma menção ao fato de um homem não se tornar maduro de fato até que tenha amargado o amor, a pobreza e a guerra.

À exceção talvez do amor – o autor tinha dificuldade no trato com as mulheres –, Orwell mostrou em textos e atitudes que defendia uma posição diante da vida que não levava em conta os confortos materiais. No posfácio para a edição de 2006 de A Revolução dos Bichos, Hitchens escreve: "O que o romance, na verdade, nos diz (...) é que aqueles que renunciam à liberdade em troca de promessas de segurança acabarão sem uma nem outra. Essa é uma lição que transcende o momento em que foi escrita".

Hitchens divide A Vitória de Orwell em capítulos que analisam a relação do autor com o império, a política de esquerda, a de direita, a América e as feministas, e discute outros pontos específicos, como os temas de seus romances e o lugar ocupado por seus livros na chamada pós-modernidade.

"Ele [Orwell] era claramente inseguro para dar o mergulho na ficção", afirma Hitchens. Apesar disso, foi capaz de criar romances que eram coerentes com as ideias que defendia em textos factuais. Se os três grandes temas do século 20 foram imperialismo, fascismo e stalinismo – assim os enumera o ensaísta –, Orwell se tornou um autor fundamental por tratar de todos esses "ismos", até a queda do Muro de Berlim, em 1989.

O analista político Timothy Garton Ash publicou no jornal The Guardian, em maio de 2001 (quatro meses antes do 11 de Setembro), um texto em que analisa a relevância de Orwell para os dias atuais e chega a uma conclusão matadora. Se tivesse de apontar apenas um motivo para se ler Orwell hoje, Ash diz que seria "a percepção do uso e do abuso da língua" e cita o ensaio "Política e a Língua Inglesa", que considera fundamental.

Ash lembra, por exemplo, a expressão "dano colateral", usada para designar a morte de civis numa missão de guerra. "Ele não só nos equipa para detectar o abuso semântico. Ele também sugere como escritores podem contra-atacar", diz o analista político. E eles devem contra-atacar usando as armas que melhor manejam: as palavras.

O homem que foi "a fria consciência de uma geração", de acordo com o biógrafo Jeffrey Meyers, culpou a época em que viveu por não ter se tornado um escritor de peso em vez de "uma espécie de panfletista". O escritor não tolerava a ideia de fechar os olhos para as mazelas do mundo e, desde muito cedo, agiu e escreveu para combater o que julgava errado. Daí afirmar que: "Adquirimos uma espécie de compulsão que nossos avós não tiveram, uma consciência da enorme injustiça e miséria do mundo e um sentimento culposo de que deveríamos estar fazendo alguma coisa a respeito, o que impossibilita uma atitude puramente estética diante da vida. Ninguém, agora, poderia dedicar-se à literatura com tanta singularidade de propósito como Joyce ou Henry James".

Essa maneira de encarar a realidade impeliu Orwell para a não-ficção, sempre numa "luta contra o despropósito", nas palavras do psicanalista Erich Fromm.

Para o primeiro livro que publicou, Na Pior em Paris e Londres, Orwell aceitou se esfolar em subempregos na capital francesa e, depois, sem trabalho nenhum, foi viver nas ruas com os mendigos londrinos. Dizem até que, nessa experiência, contraiu a tuberculose que o mataria anos mais tarde.

"Injustiça e miséria certamente não estão ausentes [das obras de Orwell]", escreve Hitchens, porém, ele também reconhece nelas "um opressivo sentimento de inutilidade e mesmo desesperança". O ensaísta arremata argumentando que Orwell, por ter vivido sob o lema de que a língua é parceira da verdade, usa os seus textos para mostrar que não importa o que você pensa, mas como pensa. "A política é relativamente desimportante, enquanto os princípios, assim como os poucos indivíduos irredutíveis que se mantêm leais a eles, costumam perdurar", diz Hitchens.

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