
Em um quarto de hotel no Japão, abarrotado de pilhas de DVD de western spaghetti, antigas histórias do velho oeste divertiam Quentin Tarantino em frente à tevê. Mas o momento de descanso naquela que era a última viagem de divulgação do lançamento de seu Bastardos Inglórios (2009) foi interrompido por uma epifania: no sul de um Estados Unidos escravocrata, de fazendas a perder de vista, um negro é libertado de suas correntes por um assassino, que oferece liberdade em troca de irrecusável e perigosa parceria.
"Eu estava me divertindo, vendo um monte de filmes que não se encontra mais para comprar. A história veio em minha cabeça, e eu me sentei e escrevi a cena de abertura. E era realmente boa. Naquele instante, eu sabia que estava comprometido a ir até o final", diz Tarantino, sentado à bancada em frente a outra plateia, três anos depois, apresentando à imprensa seu novo Django Unchained (com nome provisório de Django Livre em português). A seu lado, seus protagonistas, Jamie Foxx (ganhador do Oscar por Ray, de 2004) e seu protégée, o austríaco Christoph Waltz, apresentado a Hollywood por ele, em Bastardos, que também lhe valeu Oscar. O elenco tem ainda Leonardo DiCaprio e Kerry Washington.
Cineasta ícone de uma geração pop, autor de clássicos como Cães de Aluguel e Pulp Fiction nos anos 1990 e os títulos Kill Bill nos anos 2000, Tarantino guardava a vontade de fazer seu faroeste e até já tinha o nome Django Unchained (Django libertado, em tradução livre) há quase uma década. E mesmo um gênero tão cristalizado como o faroeste, na linguagem peculiar do americano, ganha novas cores, ainda que ele resista em admiti-lo. "Não sei se há mistura de gêneros em Django. Eu me propus um faroeste tradicional, mas a verdade é que nunca vi nada parecido (risos)."
Rituais
Na trama de Tarantino, Django (Foxx) se une a um matador (Waltz) e os dois dão início a uma trilha de vingança e, claro, muito sangue e violência. "É um ciclo de vingança, mas não tem a ver com dinheiro", aponta o diretor. "Django está à procura de sua esposa, que foi vendida a um fazendeiro. Uma vez que é um homem livre, sua missão é encontrá-la."
Cenas de matança são embaladas por temas de Richard Wagner. Encontrar a música certa, fator determinante nas obras do diretor, é o início de um ritual. "É um processo. Enquanto escrevo o roteiro, procurar a trilha é como escolher os tijolos que vão suportar a casa que estou construindo. Quando a encontro, fico escutando e andando pelo quarto, imaginando a cena na cabeça", conta Tarantino. E assim, organicamente, ele vai tateando seu terreno de criação. "Até tento esquematizar todo o filme, mas é bobagem. Os personagens se revelam aos poucos e, após a primeira metade, isso adquire vida própria."
Um misto de ansiedade e temor conduziu Christoph Waltz à nova parceria feliz por retomá-la, receoso pelas comparações. "Foi importante não cair na armadilha de repetir o que fizemos em Bastardos. Mas é uma história diferente. E o tempo passou, não é?" O papel de Dr. Schutz foi escrito para ele e o ator acompanhou o discorrer da trama nas páginas escritas pelo diretor. "De tempos em tempos, Christoph vinha jantar e lia 20, 30 páginas. Virou um ritual." Waltz retribui a gentileza. "Quentin é a garantia de que nunca atinjo o limite da minha imaginação."
A definição do cerne do faroeste, o intérprete de Django, foi mais difícil. Seis atores foram testados entre eles Will Smith, preso a Homens de Preto 3. "Eu não tinha ideia de quem seria. Mas Jamie me fez pensar: tenho o meu caubói", diz o diretor.
Jamie Foxx, quem diria, um caubói do Texas, lembrou histórias tristes de infância, de quando o preconceito racial ainda tingia sua realidade. "Cresci em um lugar onde o racismo falava alto. Quis contar a Tarantino dessa experiência. O filme é sobre isso também", diz ele, em esforço visível para manter sério o semblante. O olhar do diretor o denuncia.
Jamie sorri: "Sei que parece um tremendo lobby, mas uma coisa é falar de caubóis. Outra é falar de um caubói negro, ainda mais para quem vem de um lugar onde isso nunca foi visto por ninguém."



