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Entrevista

“Teatro experimental é mais artístico e aconchegante para mim”

Maria Alice Vergueiro, atriz e diretora

 | Divulgação/Filo
(Foto: Divulgação/Filo)

Londrina - Dama do teatro brasileiro experimental, a atriz Maria Alice Vergueiro chegou aos 76 anos cheia de paixões. Pelo contato fascinado com textos do dramaturgo e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, aprendeu a lidar melhor com o envelhecimento. De quebra, criou uma das peças mais fortes a estrear ano passado, As Três Velhas, que trata de duas irmãs empobrecidas e orgulhosas que vivem com uma criada. A Gazeta do Povo entrevistou a atriz durante sua passagem pelo Festival Internacional de Londrina. Maria Alice falou também sobre sua contribuição ao teatro experimental brasileiro nos últimos 50 anos.

A senhora tem 76 anos e ainda está nos palcos. Como lida com as dificuldades de saúde?

Estou desenvolvendo Parkinson, e ele tira o equilíbrio. Consigo andar, mas temo cair, como se tivesse labirintite. Então uso a cadeira de rodas, mas os meninos [atores e produção com quem trabalha] criaram condições para eu fazer uma das velhas na peça, a criada Garga. Depois, percebi que era absolutamente lógico. Eu sou atriz, por que não iria fazer uma das velhas? E com isso estou estudando muito a morte e a velhice.

Em que pontos da peça esses temas mais a influenciaram?

Tive muita dificuldade de entrar na personagem, que tem 100 anos. Eu me criticava muito... às vezes me dizia: "Mas eu não tenho 100 anos", ou ficava com vergonha de me aparentar tão frágil. Mas comecei a entender um pouco a possibilidade que a gente tem no teatro de "mostrar" a velha, sem "ser" a velha. Li o livro da Simone de Beauvoir, A Velhice, e é engraçado porque a gente pensa que entende a velhice porque é velho, mas na maior parte das vezes passa ao largo do assunto. Só fala dos outros, por exemplo: "Encontrei uma amiga, e ela está tão velha!". Você só não fica velho se morrer antes... Então, tem que lidar com isso, e pode ser por meio uma peça de teatro que sublima, transcende o tema.

Em que momento isso ocorre na peça?

Há um ritual de canibalismo, que na verdade é de generosidade. Garga, meu personagem, diz "O que sobrou de vida em mim? Um sopro inútil. Vocês podem me comer". No início, as pessoas riam muito, mas agora estou conseguindo fazer a cena de uma maneira que cria um silêncio na sala inteira. E no palco, cada vez nos desprendemos mais, atuando de forma lúdica.

De onde tirou a paixão por Jodorowsky?

Ele é uma figura mais conhecida do cinema cult, e foi muito comentado na contracultura dos anos 60. Eu estava no Teatro Oficina, e o Zé Celso [Martinez Corrêa] o conhecia. A contracultura abortou, mas ele continuou trabalhando com teatro, apesar de que pouca gente sabe que ele é dramaturgo.

Fui ouvir uma palestra dele, que é muito sedutor, mesmo com 82 anos. Consegui o livro com suas peças e pensei: o Luciano [Chirolli] tem tudo a ver com a Melissa [personagem que interpreta].

Por quê?

Porque eu conheço o talento dele. E quando um homem interpreta uma mulher, corre o risco de cair na chanchada, que é o que todo mundo faz, drag queens, cabarés, em que imitam a mulher, fazem jeitinhos – e não era isso o que a peça pedia. Mesmo que colocasse uma mulher, é perigoso, tem que ser bom ator.

Como era a atuação necessária?

Jodorowsky pede um melodrama grotesco, que é patético. Sabe os personagens de Molière? Não é para rir o tempo todo, você tem um pouco de pena, porque ele é explorado. Faz sentir um pouco de nostalgia, você compreende a fragilidade do ser humano. Existe sempre atrás de um melodrama algo dramático, uma tristeza. Mais uma razão para serem atores que lidam bem com isso – tanto que se costuma perguntar em testes de elenco: "você é melhor no cômico ou no trágico?" O Cacá [Rosset, diretor] sempre dizia que o mais difícil é fazer dar risada, porque para chorar tem a cebola, mas para rir não tem nenhum legume...

Por que a peça nunca havia sido montada?

Porque ele mesmo não divulgava, o livro com as peças é de 2007, e a peça é de 2003. Acho que ele não se valorizava muito como autor de teatro, ele é da época dos happenings, do teatro improvisado. Começamos a estudar a peça e vimos que ela é muito forte, porque traz também toda uma parte mítica.

O texto predomina na sua montagem...

Ah, totalmente. Ele é muito forte, e não explicativo, porque tem uma base toda de fábulas, que o próprio público edita. Se não no inicio, fica com aquilo na cabeça. Muita gente me telefona para dizer que gostou muito de tal pedaço, e quer que eu explique.

E você explica?

Não gosto muito, não explico nem para os atores, porque você acaba conduzindo a compreensão da pessoa jeito que quer. Uma peça como essa tem que ser descoberta. Vejo como uma forma de compreender os seus problemas. O Jodorowsky dá o exemplo de um rapaz que o procurou com crise de pânico e pediu ajuda. Ele o aconselhou a entrar numa livraria e simular o ataque que ele tanto temia, viver aquilo. Não tem muita diferença do psicodrama. E, quando viessem saber o que tinha acontecido, ele deveria pedir um copo de leite quente, comprar um livro pornográfico e lê-lo num café. E o rapaz fez isso e sarou. Na verdade, dialogou com o inconsciente, viveu racionalmente o que tinha vivido psicologicamente.

Que balanço faz da sua contribuição ao teatro experimental?

É um teatro artístico. A palavra experimento dá a impressão de que você está testando, de que aquilo ainda não é a verdade. Mas a diferença é que ele não tem uma urgência em estrear, ganhar dinheiro. É uma relação de trabalho onde todos participam e estão comprometidos, completamente diferente de trabalhar com um empresário, que te manda ao setor financeiro. Precisa ter isso também, mas me identifico mais com o exemplo de Brecht. Ele lia tudo para o grupo, mudava algumas coisas, é outra relação. Tem um aconchego maior, é feito entre amigos, e mesmo quando há discussões, elas são saudáveis, se você souber conduzi-las. Não é que não haja liderança, mas ele é mais empírico. Sempre me dei bem assim, e poucas vezes fui empregada, a não ser quando trabalhei para a Globo. É como chegar a uma festa na casa de alguém que não se conhece direito. As pessoas não te aceitam bem.

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