Traduzo o outro? Sob o manto de sua transitividade direta, o verbo traduzir quer habitar a condição do dizível. Traduzir o outro é assumir a posição de querer dizê-lo e, portanto, presumir a possibilidade de dizê-lo em sua completude. É assumir a possibilidade de apreendê-lo como unidade definida, fechada, estanque. É dar ao outro um nome que o vista sob medida, sem admitir a possibilidade de que haja nele algo da ordem do indizível, algo que o nome, que a ele atribuo, não possa vestir com justeza.
Ocorre que é próprio dessa transitividade demandar um objeto cuja totalidade, porém, não se pode apreender. Desejo traduzir o outro, mas não me é dado o acesso a sua unidade. A relação aí implicada é, antes, de natureza partitiva: traduzo do outro, traduzo esse algo dele; ou, metonimicamente, algo que nomeio como sendo dele e que passa a valer como o Outro.
A transitividade do verbo demanda um objeto. Traduzo do outro, pois o outro me falta. Em sua transitividade, a ação de traduzir persegue sempre um complemento. O desejo de suprir a falta é sua força natural e propulsora: instaura-se como tensão, que parte da ausência e se projeta numa direção que nomeia o outro. Essa tensão é justamente o que garante mobilidade à ação do verbo é o que lhe dá algum sentido.
No entanto, fazer desse desejo uma esperança de estancar de vez a falta; fazer desse desejo uma esperança de encontrar no outro a possibilidade de suprimir essa ausência, acaba por estancar o princípio propulsor do próprio movimento. Pois diante da impossibilidade de alcançar um outro que preencha plenamente essa lacuna, instala-se uma imobilidade do traduzir, inaugura-se a impossibilidade da tradução: decreta-se o intraduzível. Esse desejo, assim formulado como esperança, separa-nos da própria possibilidade de realização da tradução: o tradutor é o criador de suas próprias impossibilidades. Na tradução, essa esperança é a primeira que mata! Sedento de palavra, de uma palavra capaz de dizer os silêncios do outro e de calar a sua própria falta, o tradutor se aproxima do texto como de um leito de morte e, na esperança de ouvir os mais secretos sussurros do moribundo, não percebe que o seu desejo o imobiliza, torna-se sua própria mortalha.
Tradução cria. Tradução procria. Tradução recria. Tradução transcria. Tradução é cria. Tradução é tudo. Tradução não é nada. Tradução é o que sobra. Tradução é o que falta. Tradução é a obra.
Traduzo-me? Traduzir é também ação reflexiva, ainda que nem sempre se manifeste assim em seu uso mais coloquial. Afinal, quem é de fato esse outro que digo traduzir? Em verdade, traduzo-me. Pois esse outro inalcançável não é senão parte distanciada de mim mesmo, metáfora do que em mim falta. A cena do encontro com o outro é apenas a imagem que motiva uma abertura, uma projeção em sua direção; mas a realização do encontro se põe em xeque diante da constatação de nossa insuperável separação. A condição natural do homem é a de estarmos diante dos outros e do mundo como diante dum abismo e termos a solidão como regra. Aí se impõe o desafio de ser humano, de habitar o mundo na condição humana: como arco distendido entre a carne e a linguagem. A tradução não faz nada de mais. É apenas mais uma prática humana. Dentre elas, no entanto, é aquela que mais põe em evidência a condição que habitamos; é aquela que mais dá visibilidade aos limites de nossas relações pessoais, lingüísticas, discursivas, culturais, sociais, ideológicas, econômicas.
Traduzo, traduz-se, portanto, em traduzo do outro e em traduzo-me. O verbo traduzir não alcança a intersecção, não lhe é dado tangenciar. Realiza-se, antes, como uma assíntota: uma linha de força que, em projeção infinita, tende a aproximar-se do outro, busca e almeja o seu encontro, mas nunca o atinge em ponto algum. Assim, a tradução impõe-se de modo intransitivo. Traduzir é aceitar o desafio de projetar-se indefinidamente na direção do outro e, nisso, construir uma dimensão possível de transitividade.
Tradução não tem nome. Tradução é o nome. Tradução dá o nome. Tradução assina. Tradução assassina. Tradução é a lei. Tradução é a voz. Tradução dá voz. Tradução dá ouvidos. Tradução é o que fala. Tradução é o que cala. Tradução é tudo isso junto. E tudo isso, somado, somos todos nós, demais.
Mauricio Mendonça Cardozo é Doutor em Letras pela USP, tradutor e professor de tradução do Curso de Letras da UFPR. É tradutor das obras A Assombrosa História do Homem do Cavalo Branco e O Centauro Bronco, de Theodor Storm (Editora UFPR, 2006) e O Tigre de Veludo, de e.e.cummings (em conjunto com Adalberto Müller e Mario Domingues, Editora UnB, 2007).



