
Na São Paulo dos primórdios de 1900, a Rua 25 de Março fotografada por Vincenzo Pastore (1865-1918) parecia um cenário de bangue-bangue. No Brasil dos anos 1950, durante a Era Vargas, José Medeiros (1921-1990) captou o espírito da época com imagens de beldades no Jockey Club carioca ou casais jogando peteca na praia de Copacabana.
Os trabalhos dos dois fotógrafos, nos livros Cinefotorama (Medeiros) e Na Rua (Pastore), saem agora dentro da série sustentada pelo acervo do Instituto Moreira Salles, formado por mais de meio milhão de imagens. Cada título é acompanhado por um texto de autor de renome feito especialmente para a edição.
Fora da série, o IMS também publica Sequências, de Otto Stupakoff (1935-2009), com a proposta de coligir imagens em série de um dos fotógrafos mais importantes do país. Na apresentação do volume, Bob Wolfenson fala sobre a experiência de "identificação mitológica" que teve ao visitar uma exposição do paulista Stupakoff no Museu de Arte de São Paulo.
Na fotografia, existe o valor da imagem única, aquela pinçada em meio a dezenas ou centenas de outras para ser ampliada e exibida, seja numa revista de moda ou na parede de uma mostra. Wolfenson admite que a tarefa de eleger uma foto é sempre ingrata e, com frequência, um profissional acaba indeciso com duas, três ou mais opções de um mesmo trabalho.
Para rebater a escola de Henri Cartier-Bresson, a da "obrigatoriedade da síntese", Wolfenson cita o artista plástico David Hockney, que realizou uma série conhecida de colagens com fotos instantâneas (snapshots), como as de uma máquina Polaroid.
Para retratar uma estrada, Hockney fotografava separadamente as partes do quadro que queria formar. O resultado final se assemelhava a um mosaico. "Ele enfatizava exatamente a questão de que uma fotografia não dá conta de um todo, de uma situação, de uma cena, de uma ideia e, principalmente, de um ver", escreve Wolfenson.
A opção por mostrar vários momentos de um mesmo ensaio no livro de Stupakoff cria pequenas narrativas, dá mais informações e, de certa forma, torna mais forte o vínculo com quem vê. Um bom exemplo é o da "Garota Caindo". Na primeira imagem, a mulher está sentada numa cerca de arame e olha para o lado, fazendo graça. Na segunda, parece perder um pouco do equilíbrio, mas o recupera na terceira, caprichando na pose. Na quarta e última, porém, ela se estatela no chão.
Sequências inclui ainda quatro textos escritos pelo próprio Stupakoff, que tinha um capacidade impressionante de descrever imagens. Ele disse: "Para um fotógrafo, viajar sem sua câmera é uma ocasião para perceber, em meio à vida comum, numa investigação muito próxima e sem perturbações, que, no fim das contas, a vida não é tão comum assim. Ver e registrar somente aquilo que está ali para ser visto é não entender nada de nada".
Misses
Um "poema-roteiro" de Zuca Sardan introduz o leitor às 48 imagens de José Medeiros em Cinefotorama. Documento fotojornalístico há inclusive fotos da final da Copa do Mundo de 1950, no estádio Maracanã , a seleção feita por Cristina Zappa e Samuel Titan Jr. têm momentos inspirados. Quatro páginas parecem dialogar entre si sobre o tema "enfileirados". Começa com freiras, de hábitos pretos e chapéus brancos, de costas para a câmera. Continua com um grupo de misses (com coxas que equivalem à cintura de uma modelo dos dias atuais), passa por um grupo de militares em um 7 de Setembro e termina acompanhando trabalhadores da estrada de ferro Rio-São Paulo, em 1959.
Cenas urbanas
O título de Na Rua deixa evidente o tema do ítalo-brasileiro Vincenzo Pastore (1865-1918). Dono de um estúdio fotográfico em São Paulo, grande parte de seu legado é de retratos. Mas o livro organizado pelo IMS investe em cenas urbanas algumas são reveladoras e todas as 43 têm cerca de cem anos de idade.
O texto de apresentação é de Antônio Arnoni Prado, professor de teoria literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Ele diz que a cidade registrada por Pastore tem um "ritmo antigo e quase melancólico", "sacudida pelo barulho dos bondes e dos imigrantes, pela abertura de avenidas, pela novidade dos balcões de treliça, acompanhando as vesgas curvas nas envasaduras das casas, iluminadas pelos guarda-copos de ferro forjado nos postes das calçadas irregulares".
As pessoas que aparecem nas fotografias de Pastore são simples criando um provável contraste com as que visitavam seu estúdio , usam roupas desgastadas e sujas e vivem da maneira que podem (um vende vassouras, outro, tecidos). As imagens que fez de engraxates mostram meninos de pés descalços trabalhando no Largo São Bento ou jogando bola de gude em frente à Estação da Luz. Em outra, que mostra homens conversando em um banco de praça, dá para ver a propaganda de um calçado da época: "Clark, o único superior do Brasil".
É uma viagem prestar atenção nos detalhes de cada cena: crianças de calças curtas e botas, as fachadas destruídas que acompanham a linha do bonde, o chapéu de um sujeito que passeia pelo parque (igual ao que o comediante Buster Keaton usava).
Como parte da série do IMS, já foram publicados Cara de Artista, de Carlos Moskovics e texto de Sergio Miceli, e Paisagem Moral, de Marcel Gautherot, com poema inédito de Francisco Alvim.
Serviço
Sequências, de Otto Stupakoff. Instituto Moreira Salles, 216 págs., R$ 62.
Cinefotorama, de José Medeiros com "poema-roteiro" de Zuca Sardan. Instituto Moreira Salles, 128 págs., R$ 39.
Na Rua, de Vincenzo Pastore com ensaio de Antônio Arnoni Prado. Instituto Moreira Salles, 108 págs., R$ 39.





