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Perfil

Um argentino em trânsito

O cotidiano de um músico de rua argentino viajante, cravado no coração da Rua XV entre tangos, saudades e boleros

Emiliano Ernesto Charly em seu palco improvisado no calçadão da Rua XV: o músico dorme no carro e chega a ganhar até R$ 300 por dia | Giuliano Gomes/Gazeta do Povo
Emiliano Ernesto Charly em seu palco improvisado no calçadão da Rua XV: o músico dorme no carro e chega a ganhar até R$ 300 por dia (Foto: Giuliano Gomes/Gazeta do Povo)

No calçadão da Rua XV, homens-placa convidam para almoçar enquanto uma vendedora de calçados anuncia a promoção do dia. A estátua viva cumprimenta lentamente a senhora que lhe entrega dois reais. Crianças cheiram cola embaixo de coberturas e ambulantes vendem DVDs de procedência duvidosa – de uns dias pra cá, as bandeirinhas do Brasil caíram um tanto em popularidade. Uma mãe pede para que o filho pequeno não tente pegar o pombo, que é sujo e faz mal. A viatura da PM trafega lentamente entre trabalhadores de passo acelerado e moças uniformizadas, que abordam com energia possíveis clientes, na busca por cadastros para a loja de roupas. E quando o policial acena, em frente ao Bondinho, Emiliano Ernesto Charly diz: "Os policiais curitibanos são simpáticos."

Emiliano tem 30 anos, um violão, uma caixa de som com bateria elétrica, um carro e é músico de rua. Nascido na Cidade do México, ainda antes de adquirir consciência de si foi morar em Córdoba, a segunda maior cidade argentina, região entrecortada por vales, serras e muitas lagoas. "Meus pais são argentinos de um perfil bem ao coração do país, uma gente cortês com os turistas e dotada de um humor regional bem único."

Por lá, Emiliano foi feirante, panfleteiro, vendedor e, evidentemente, músico, de tocar em pequenos festivais, bares e restaurantes locais. Um dia resolveu mudar.

Turning point

No fim de março, Emi­­liano estava cansado. Comu­­nicou a família, os amigos e a namorada que iria viajar por aí para viver de tocar violão. "Sempre sonhei viver de música. Mas a tônica de trabalhar em bares e festivais é a de pagar mal e ter pouca valorização do trabalho artístico realizado. Resolvi ir atrás do meu próprio caminho." Então, diante da família contrariada, ele pegou seu carro, as economias de quase um ano e partiu para "simplesmente ir tocar".

A turnê começou pelo Rio de Janeiro. "Não gostei, é tudo muito caro." Depois, São Paulo. "Muito movimento e barulho." Por fim, Curitiba, desde segunda-feira. Ele estacionou seu carro num cantinho da Avenida Luiz Xavier. Desde então, a rotina tem sido breve: dormir no carro, acordar para um café nas redondezas, tocar por uma hora e meia, duas horas, almoçar, fazer um pouco de ginástica em alguma academia do Centro, depois tocar mais uma hora e meia, duas horas. "Num dia bom, dá para ganhar até R$ 300."

O tempo é fundamental para um músico de rua. Quando tem sol, o ânimo das pessoas melhora e elas estão mais dispostas a dar gorjetas. O frio desola. Mas há questões mais amplas. "As canções de amor sempre geram maior comoção e deixam as pessoas mais mãos abertas. É assim que se fala por aqui?"

O repertório do calçadão é um tanto previsível: tangos e boleros. Mas, de uns dias pra cá, o chamamé "Mercedita", que conta a história de um amor gaúcho – "Que dulce encanto tienen/ Tus recuerdos, Mercedita" – tem sido mais frequente e lhe deixado emocional. "Acho que a minha namorada irá me largar. Ela está enlocada comigo", afirma, com um certo desalento. Chega um argentino que mora em Curitiba há dez anos. Quer cantar com Emiliano o clássico "Alfonsina y el Mar", eternizado na voz de Mercedes Sosa. Ele diz que depois irá tocar, sim. Em tom baixinho, confidencia: "Chega de música triste por hoje."

Emiliano não fuma e não bebe, mas tem um vício que prefere não revelar. "Acho as mulheres brasileiras encantadoras, belíssimas. Mas as do Norte são mais ‘acessíveis’." Ele se admira com a quantidade de mulheres que se aproximam para cantar, como a professora aposentada Creuza Campos de Castro, de 78 anos, que logo começa "Por Causa de Você", de Tom Jobim – "A nossa casa, querida/ Já estava acostumada/ Guardando você" –, disfarçando uma certa tristeza. "Essa música é linda. E o Emiliano é muito sensível. Tenho vindo todo dia deixar um trocadinho pra ele." Creuza, inclusive, ofereceu abrigo ao músico, caso ele resolva ficar mais dias. "Acho que ele não vai querer sair mais de Curitiba", aposta.

Tradução

Emiliano está há seis dias na capital. "A característica daqui é 41?", pergunta, referindo-se ao nosso DDD. Ele não canta muitas canções em português, mas diz gostar da obra de Caetano Veloso, Chico Buarque e Villa-Lobos. "Minha preferida em relação às melodias brasileiras é ‘Odeon’, de Ernesto Nazareth." O juízo é compartilhado pelo metalúrgico Odnei Alves, que estava de passagem, se preparando para voltar a trabalhar. "Que música bonita, não?"

Um argentino que não gosta de futebol – "somos um país com graves problemas, onde o futebol é usado como meio para conter os nossos instintos de protesto" –, Emiliano reconhece as dificuldades de diariamente submeter seu trabalho à praça pública.

"A música, antes de tudo, é uma maneira de se comunicar, de conhecer gente. Ser músico de rua é desafiador, porque todo dia você senta, apresenta o seu trabalho e está sujeito a todo tipo de reação. Mas vale a pena, mesmo para quem, como eu, muitas vezes não consegue entender o sotaque brasileiro. A música acaba sendo a linguagem tradutora, livre", completa.

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