
O londrinense Mário Bortolotto, aos 47 anos, não para. Sobreviveu a três tiros, e mais um quarto de raspão, na madrugada do dia 5 de dezembro, durante uma tentativa de assalto ao bar do Espaço Parlapatões, na Praça Roosevelt, em São Paulo. Depois de uma temporada no hospital, retornou ao seu apartamento no final do ano passado. Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, por e-mail, ele comenta o incidente, anuncia os projetos para 2010 e afirma: "Meu teatro é rock-and-roll."
Desde que você foi baleado, e durante a temporada em que ficou na UTI, no hospital, muita gente pediu para que todos rezassem por você. Você foi seminarista. Acredita em Deus?
Eu fui seminarista, sou católico e acredito em Deus. Sou grato às pessoas que rezaram por mim, mas longe de mim essa ideia de ter uma missão. Vou aproveitar as horas extras que Deus me deu pra fazer minhas faixas bônus com mais serenidade, sem muita pressa de querer agarrar o mundo, embora minha agenda desminta isso.
Você leu durante a temporada no hospital?
Eu li um livro que meu amigo Pedro Pellegrino me deu: Como a Geração Sexo Drogas e Rock-and-Roll salvou Hollywood, de Peter Biskind. Li na UTI. Bom pra caralho.
Você não gostou de uma reportagem da Folha de S.Paulo sobre você, nem do comentário do jornalista Maurício Stycer, da UOL. Qual foi o problema desse episódio?
O Stycer tava puto comigo porque eu não quis conceder uma entrevista no dia que ele me pediu. Então ele quis se vingar, insinuando uma pá de bobagem ao meu respeito. Ele e o Fábio Victor jogaram baixo querendo me mostrar como um artista queridinho do poder público e que procurava se beneficiar disso e como um covarde com medo de denunciar um criminoso. (Leia mais no BOX)
Depois do incidente, da temporada no hospital, o que mudou em seu dia a dia?
Eu passei a ficar mais em casa, até obrigatoriamente no início. Mas confesso que agora tô até gostando. Mas sinto saudades da noite. No futuro devo alternar mais os dois. E eu decididamente parei de beber uísque, simplesmente porque não consigo beber pouco. Se vou beber, é de dez doses pra cima, e aí fico fora de centro e desperdiço o que mais gosto na noite, que é observar as figuras, conversar e, principalmente, lembrar de tudo que aconteceu com detalhes. Andava muito louco e não preciso realmente disso, não na intensidade que eu tava, mó carro do Kowalski no final de Vanishing Point (Corrida contra o Destino, 1971). Dava pra prever o final. Foram três anos bem malucos. Agora vou escrever um livro sobre eles. Vou ficar sossegado na cerveja e no vinho e esperar o demônio voltar a arranhar minha janela.
Já começou a escrever algo inédito? Pretende problematizar literariamente o incidente?
Tô escrevendo sim, mas não quero nem pensar no incidente. Pelo menos não agora. O incidente fecha um ciclo na minha vida que com certeza vai virar literatura, mas ainda não sei se o incidente propriamente dito vira literatura. Mas tudo é possível. Não sou do tipo que se esquiva da literatura, assim como não hesito diante da vida.
A sua reação, aos assaltantes, dividiu opiniões. Se vier a passar por algo imilar, como pretende reagir?
Eu não sei. Sou do tipo que age por instinto. Então acho melhor tentar evitar estar em lugares onde possa vir a agir assim.
Se encontrar na rua, por acaso, um dos sujeitos que te participou da ação, o bandido, o que atirou em você, o que pode acontecer?
Olha, cara, se eu tiver certeza que foi o cara, o sangue vai subir. Não tem como eu querer evitar. No dia do reconhecimento, fiquei olhando pros caras e não conhecia ninguém. Tava muito bêbado na noite que o lance aconteceu. Se eu tivesse certeza que era algum daqueles quatro, a polícia ia ter que me segurar. Eu ia partir pra cima dele, mesmo com o braço na tipóia. Não tenho orgulho de ser assim. Mas me conheço. Não sou do tipo que fica pensando nisso o tempo inteiro, guardando rancor, remoendo vingança, desejando mal, nem nada disso, mas se eu trombo esse cara, o tempo fecha. É instinto. Pô, o cara deu três tiros em mim e segundo me contaram ainda voltou pra dar o quarto que pegou de raspão. Meu anjo da guarda até dorme em serviço, mas depois que ele acorda, não tem pra ninguém. Mas quero mesmo é tentar ficar em paz e não pensar em nada disso.
O espetáculo Música para Ninar Dinossauros, estreia dia 18 de Março no Festival, de Teatro de Curitiba. Poderia falar sobre a peça? Você virá para Curitiba?
É meu último texto que eu ainda nem terminei de escrever por conta da minha recuperação que me obriga a escrever catando milho. Fala basicamente da minha geração, a rapaziada que nasceu nos anos 60. Não é a rapaziada que viveu os anos 60, mas sim a que nasceu. Em 68, quando todas as revoluções aconteciam, a gente tava entrando na escola, colecionando ingenuamente figurinhas do Médici que a gente devia amar e respeitar porque era nosso "querido" presidente. A gente não sabia de porra nenhuma e quando descobrimos já era tarde demais. Ficamos perdidos. O elenco é bacana. Trabalho como ator na peça porque tava com saudades de trabalhar com texto meu, de dizer em cena o que escrevi e também pela ótima companhia que vou ter. Vão estar no elenco o meu amigo Lourenço Mutarelli que sempre admirei como ator desde que o vi em O Cheiro do Ralo, meu amigo e parceiro musical Paulo de Tharso que lancei como ator no espetáculo Chapa Quente, meu amigo de infortúnios Carlos Carah (ele também levou três tiros na perna na noite do assalto) e meus amigos Marcelo Selingardi, com quem já trabalhei na peça Tape, e Francisco Eldo Mendes, velho colaborador do Grupo. E tem também seis lindas e talentosas atrizes: Helena Cerelo, Daniela Dezan, Wanessa Rudmer, Paula Flaiban, Fernanda Sanchez e Carolina Manica. E é claro que vou estar em Curitiba. Trabalho como ator na peça e os ensaios só começam depois do Carnaval.
Você conta que o CD de sua banda, Saco de Ratos, saiu. O que a banda representa para você? Você parece, pelos seus relatos no blog, gostar tanto do blues e do rock, quanto do teatro.
O CD saiu e tem 15 faixas. Tá rock-and-roll pra caralho. Até as baladas são rock-and-roll. É um trabalho do qual tenho o mó orgulho. E não tem esse negócio de gostar mais de rock ou de teatro, simplesmente porque tudo o que faço sempre foi rock-and-roll. Meu teatro é rock-and-roll.
Quais os projetos para 2010?
Vou estrear no festival de Curitiba a peça que já falei. No dia 30 de março, estréio em São Paulo na peça Extâse, de Mike Leigh, no Centro Cultural Banco do Brasil. Depois, vou trabalhar no primeiro longa do diretor Gustavo Galvão, que é o Nove Crônicas para um Coração aos Berros. Quero escrever um novo romance, talvez esse dos três anos loucos que vivi, os anos do furacão, ou os três anos antes da queda, algo do tipo. Devo lançar em breve pela Editora Barcarola um livro de peças e outro de contos. Pela Editora Atrito, devo lançar um novo livro de poesias. E, no final do mês de fevereiro, vai acontecer no Itaú Cultural uma semana com meu trabalho nas áreas de teatro, literatura, cinema, poesia e música com debatedores convidados, shows e exibições de vídeos.
Se sua vida tivesse sido interrompida com o incidente, como você analisaria a sua trajetória até então?
Um cara que sempre fez tudo com verdade, só isso, simples assim.
Você se expõe no blog. Contou que gosta de filme B, que desgotou da adaptação que fizeram de Nossa Vida Não Vale um Chevrolet etc. Muita gente se identifica com você. Há quem veja em você um líder, outros gostam do que você escreve e gostariam de escrever com a sua dicção. Como você lida com isso?
Não me sinto à vontade na posição de líder, mas sei que tenho uma responsabilidade com quem trabalha comigo ou simplesmente com quem aprecia o meu trabalho. Tento não decepcionar ninguém, mas também sei que é inevitável.



