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Cannes 2009

Um drama no feminino

Entrevista: Heitor Dahlia, cineasta

O diretor Heitor Dhalia,  e Debora Bloch, Laura Neiva e Vincent Cassel chegam para a exibição de gala do filme A Deriva  em Cannes | Valery Hache/AFP
O diretor Heitor Dhalia, e Debora Bloch, Laura Neiva e Vincent Cassel chegam para a exibição de gala do filme A Deriva em Cannes (Foto: Valery Hache/AFP)
Laura Neiva é dirigida por Dhalia no set de À Deriva |

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Laura Neiva é dirigida por Dhalia no set de À Deriva

A atriz Debora Bloch e a novata Laura Neiva não esconderam as lágrimas ao final da sessão de À Deriva, na seção Um Certo Olhar do Festival de Cannes, na noite de anteontem. Era de se esperar: o longa de Heitor Dhalia foi aplaudido calorosamente, de pé, por vários minutos.

Laura interpreta Filipa, uma adolescente que vai a Búzios com os dois irmãos e os pais Mathias e Clarice (Vincent Cassel e Debora Bloch), em tese para que Mathias termine de escrever seu livro. Na verdade, o casamento passa por crise grave. Ao mesmo tempo, a menina de 14 anos vive a descoberta da sexualidade.

À Deriva é bem diferente dos trabalhos anteriores do diretor, Nina e O Cheiro do Ralo, que transitavam pelo underground paulistano, com protagonistas sombrios. Aqui o registro é totalmente solar e feminino – as mulheres são personagens completos como raramente se vê no cinema brasileiro. O cineasta, que lançou em Cannes a produtora Celluloid Dreams Brasil, falou à Gazeta do Povo na tarde de ontem:

Este filme é muito diferente de Nina e O Cheiro do Ralo. Como foi concebido?

Eu tive a idéia dessa história e escrevi, junto com a Vera Egito, logo depois de O Cheiro do Ralo. Fui percebendo que era um filme mais pessoal, sobre a separação de meus pais. Mas foi tudo muito orgânico, não teve intenção nem plano nenhum. Acho que Nina e O Cheiro do Ralo se concluem, são filmes mais fechados. Este é mais pessoal e mais maduro, mas quis correr alguns riscos, senão não tem graça. Quero falar com mais gente, comunicar com mais pessoas. O Cheiro tinha alguma comunicação, mas Nina não queria se comunicar. Acho que há filmes, como os de Lars Von Trier, que buscam a provocação, o conflito. Não é de minha natureza buscar isso, mas a obra do Lourenço Mutarelli, em quem me inspirei antes, tem isso.

Você diz que o filme é mais pessoal, mas a protagonista é uma menina. O fato de trabalhar com Vera Egito teve a ver com isso?

Logo quando tive o insight, pensei na Felipa menina. Morei perto da praia muito tempo, meus pais se separaram, mas levou um tempo para sacar que era um território familiar. Pensei muito na minha mãe para criar a personagem da Debora Bloch. Ela sofreu muito com meu pai, que era bem como o personagem do Vincent Cassel, um sujeito populista, charmoso, mas ausente. Claro que a Vera acentua esse lado feminino, mas já estamos trabalhando no nosso quinto roteiro juntos e nem sempre se trata de histórias de mulheres. Serra Pelada, por exemplo, é totalmente masculino. Acho que ela traz uma sensibilidade, uma doçura. Mas a Filipa também tem atitudes de menino. O fato de ela ser menina me ajudou a separar a autobiografia do pessoal. Se fosse menino, seria uma autobiografia. Depois o filme cresceu para ser mais sobre a família, não só sobre a adolescente.

Como se deu a escolha do elenco?

Foi uma combinação de coisas. A Debora foi a primeira, porque ela lembrava muito a mãe da minha primeira namorada, que ‘enchia a lata’. Foi uma espécie de homenagem. Para o papel de Mathias, estava com dificuldade de encontrar um ator nessa faixa de idade. Gosto muito de alguns atores brasileiros, como Selton Mello, Wagner Moura, mas eles eram muito jovens para o papel. Vi o Vincent Cassel dando entrevista, em português, no programa Amaury Jr. Por causa da parceria com a Focus, era algo possível de conseguir. Demorou um tempo, mas ele acabou topando. Há poucos atores adolescentes, então fizemos uma grande pesquisa, etapa que foi muito divertida. As peças se encaixaram, os atores são bonitos, o que funcionava para o filme, que é sensual, há uma tensão sexual em todas as relações.

Como foi o trabalho com o elenco?

Foi maravilhoso. Dei o texto apenas para os atores profissionais, os adolescentes só viram o roteiro uma vez para saber a história completa e depois tomei. Eles faziam jogos dramáticos, improvisações, porque não queria que eles mantivessem o naturalismo.

Você mencionou que estava buscando o público. Isso é importante?

Sim, cada vez mais. Há uma mudança de paradigma no cinema mundial que muita gente ainda não percebeu. Estava falando com a Hengaméh (Panahi, sócia de Heitor na produtora Celluloid Dreams Brasil), e ela disse: "O filme de arte morreu". Ou seja, o filme de arte não se vende, não tem mercado e não se viabiliza, com o fim do mercado de vídeo e a crise econômica. Precisamos de produtos de qualidade que sejam possíveis de serem vendidos no país e fora. Cinema é uma expressão pessoal, mas uma expressão pessoal muito cara. E para mim qualidade tem tudo a ver com resultado. Sou defensor do cinema de autor, mas não pode ser ruim. Não é mais assim. Shakespeare era bom e era popular. Depois que comecei a estudar dramaturgia, aprendi que é preciso engajar o público, e ele quer se envolver com os personagens.

O cinema brasileiro ainda peca nisso?

Eu acho que vem melhorando, você vê filmes que viajam. É o caminho a seguir. Não dá para ter apoio estatal sem compromisso com a bilheteria. Claro que todo tipo de filme é necessário, mas também é preciso pensar nisso.

É necessário encontrar outras formas de financiamento para os filmes brasileiros?

Eu acho. E ter o compromisso de fazer o possível para dar certo. Cinema é arte mas também atividade econômica. É fácil não ter obrigação nenhuma de retorno. É preciso pensar na qualidade do projeto, exigir a qualidade.

Você disse que, com sua produtora Celluloid Dreams, quer fazer filmes locais que se vendam no mercado internacional. Como é essa medida?

Vai ser caso a caso. Este era um filme em português, que eu achava local, e o filme vai viajar. Mesmo sendo pequeno, ele encontrou um nicho do mercado. Mas o que faz um filme ser vendido é ser bom.

Tem interesse em dirigir fora do país?

Tenho, se for um projeto interessante. Mas meu próximo projeto deve ser Serra Pelada, um filme brasileiro, grande, com perfil forte para o mercado internacional, que seria impossível só com a Ancine. Produzo com a Celluloid Dreams. Se um produtor internacional me dá dinheiro, ele não é mecenas, vai cobrar. É preciso batalhar muito para o filme ficar bom, o mercado é muito competitivo. Com os parceiros internacionais, o sarrafo é mais alto.

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