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Literatura

Um escritor na multidão

Salman Rushdie lança novo livro nos EUA e comenta o fato de o seu romance Filhos da Meia-Noite ter sido escolhido o melhor romance da história do Man Booker Prize

“Eu não quero ficar zombando do aiatolá Khomeini, mas devo lembrar a todos que só um de nós está vivo. Devemos todos lembrar que a caneta pode ser mais poderosa que a espada. Não mexa com romancistas.” Salman Rushdie, escritor |
“Eu não quero ficar zombando do aiatolá Khomeini, mas devo lembrar a todos que só um de nós está vivo. Devemos todos lembrar que a caneta pode ser mais poderosa que a espada. Não mexa com romancistas.” Salman Rushdie, escritor (Foto: )

Salman Rushdie está sentado na mesa da rabina Judith Lazarus Siegal bebendo sua dose de vodca Grey Goose. O gesto parece ser algo completamente inapropriado dentro de uma sinagoga, mas, ao que tudo indica, não é: outro rabino passa pela sala e sugere que ele pegue uma coqueteleira e prepare daiquiris.

O autor declina educadamente: ele só bebe vodca pura. É um costume literário. "Ao que tudo indica, Vikram Seth gosta de bebericar uma bebida pura ao fazer suas leituras, só que no caso dele é o gim", informou Rushdie.

O motivo da visita do autor à sinagoga Temple Judea, localizada no subúrbio de Miami, foi realizar uma leitura de sua obra, The

Enchantress of Florence (em tradução livre, "A Feiticeira de Florença", a sair no Brasil pela Companhia das Letras, mas ainda sem data definida para o lançamento).

Apesar de a receita das vendas nas livrarias ter ficado abaixo do esperado, o autor declarou que "Depois de J.K. Rowling, acho que sou o maior fenômeno literário no Reino Unido". Depois de nosso encontro, ele seguiria para Milwaukee, de onde viajaria para Chicago e, depois, Madison. O ritual é o mesmo todas as noites: uma rápida de leitura de 20 minutos e depois uma breve sessão de perguntas e respostas.

"Costumava realizar leituras de uma hora, mas ninguém tem paciência para isto hoje em dia. As perguntas, por sua vez, se renovam a cada dia", declara. Eu disparei várias. Alguma dica sobre jovens escritores? Ele se considera, na condição de um romancista anglo-indiano, como um cônego literário eurocêntrico? O que gerou a tal fatwa contra ele? Rushdie declara que não vê a hora em que o tormento acabe. "Sempre achei que o propósito secreto de um tour literário era fazer que o autor começasse a odiar o livro que escreveu e, como resultado, o cara decidisse escrever outro livro".

Secreto ou não, tal propósito parece estar funcionando bem para Rushdie. Ele irá lançar um novo romance no final deste mês. "Estou pensando em escrever um livro infantil. Meu filho caçula tem 11 anos, a mesma idade que o meu mais velho tinha quando escrevi um livro para ele. O Milan já começou a me perguntar: ‘Cadê o meu livro? ‘"

Grande gênio

Honestamente, não acredito que Rushdie odeie tours literários. Ele entra no clima muito facilmente. Ele gosta quando, antes ou depois de realizar a leitura, um mensageiro costa-riquenho lhe dá um firme aperto de mão e lhe diz que é uma honra encontrar um "grande gênio vivo". E quem não iria gostar disto?

Ele adora fazer as piadinhas rotineiras antes de realizar a leitura e com certeza se delicia em ver as mulheres das primeiras filas com cópias de seu livro implorando por um autógrafo. E por qual motivo ele desgostaria desta tietagem depois de passar grande parte de sua carreira literária correndo o risco de ser assassinado? Ele até parece exibir uma felicidade velada ao dar autógrafos.

"Deixe-me lhe contar algo: eu ultrapassei as vendas de Jimmy Carter em seu estado natal. Eu autografei 475 cópias de meu livro em menos de uma hora em minha estada em Atlanta. E isto não é nada. Em Nashville, eu autografei mais de mil cópias em menos de uma hora. Acho que quebrei um recorde", declarou irreverentemente em uma breve entrevista conduzida no elevador de seu hotel.

As comemorações não se resumem ao número de autógrafos. O autor acaba de ganhar um prêmio chamado de "O Melhor do Booker" (The Best of the Booker), evento que marcou o aniversário de 40 anos do Man Booker Prize, a láurea literária mais importante do Reino Unido. O que mais causa espanto é que esta é a terceira vez que Os Filhos da Meia-Noite (Companhia das Letras) é escolhido pela comissão. Em 1981, a narrativa pós-colonial, pós-moderna e mágico-realista sobre o nascimento da Índia e a morte do Raj britânico foi escolhido o romance do ano, fato que catapultou Rushdie para a fama e lhe deu condições para sair do emprego em uma agência e se dedicar à literatura. O livro logo se tornou um best seller mundial. "Recebi 1,5 mil libras adiantadas, o que não era nada e então despedi meu agente". Em 1993, a fim de celebrar a 25ª edição do prêmio, o livro Os Filhos da Meia-Noite foi escolhido como o "Booker dos Bookers".

Vai entender

Hoje um morador de Nova Iorque, Rushdie, um verdadeiro camaleão cultural, está cada dia mais familiarizado com americanismos.

Para o melhor do Booker, foram selecionados como finalistas os vencedores de seis edições anteriores do prêmio: The Ghost Road, de Pat Barker (1995), The Siege of Krishnapur, de J.G. Farrell (1973), The Conservationist, de Nadine Gordimer (1974), e Os Filhos da Meia-Noite – para que o povo votasse em sua obra favorita. Rushdie ganhou com uma grande folga.

Alguns críticos (incluindo Neel Mukherjee, de um blog do Guardian) escarneceram do prêmio, sugerindo que o mesmo não possuía valor algum e tipifica a forte tendência britânica em premiar qualquer coisa através de uma democracia tola e vazia.

Todavia, Rushdie não poderia estar mais feliz. Ele não poderá recebê-lo pessoalmente, mas já escalou os filhos, Zafar e Milan, para irem à cerimônia. "O que é mais gratificante para mim é saber que mais de 50% das pessoas que votaram em Os Filhos da Meia-Noite têm menos de 35 anos. O livro transpassou gerações, o que é maravilhoso. Eu temia que ele fosse apenas um livro tópico sobre o nascimento da Índia e que não iria fazer sucesso. O problema em se contar história contemporânea é que a sua mensagem estará sempre desatualizada".

Porém, ao ler o romance pela primeira vez mesmo após os 25 anos desde que cruzei o atlântico, fui atingido pela confiança da escrita de Rushdie, na época com 33 anos, e o manuseio virtuoso das subversões e ziguezagues narrativos. Na época em que foi lançado, um crítico chegou a dizer que "Ninguém consegue terminar de lê-lo".

"Eu não era nem um pouco confiante quando o escrevi. Foi tudo um truque. Meu primeiro romance (Grimus, de 1975), não trouxe resultados e virou forro para gaiolas. Eu escrevi outros quatro ou cinco romances impublicáveis, e então me senti como um escritor derrotado. Na mesma época, Ian (McEwan), Martin (Amis) e Julian (Barnes) escreveram grandes sucessos. Todos os meus contemporâneos eram Ferraris que me fizeram comer poeira", diz o escritor.

Algo bom surgiu deste debute literário desastroso, todavia. Rushdie gastou parte das 700 libras que recebeu pela obra para sair de Londres e fazer turismo em seu país natal. A viagem agiu como catalisadora para sua imaginação. Na Índia, ele notou a boa prosa de "escritores indianos como R.K. Narayan, Anita Desai e outros que não eram suficientes para representar o país". Mais importante que isto, ele percebeu que poderia escrever algo que iria tentar capturar "de forma presunçosa e avassaladora" o espírito polimórfico da Índia em um único livro.

"Não me leve a mal. Eu amo (E.M.) Forster. Para falar a verdade, eu o conheci no King’s College, em Cambridge. Ele me servia chá e eu o via como alguém corajoso o suficiente para pregar o anti-imperialismo em Passagem para a Índia. O jeito "forsteriano" de escrever de maneira clara e clássica não combinava com a Índia que conheci. O país é caloroso demais. Mesmo em áreas rurais, você nunca está sozinho. Eu queria escrever o equivalente literário de uma multidão. Para isto, utilizei um truque, uma tentativa deliberada para criar tantos incidentes na trama que fariam o leitor se sentir em uma multidão".

Rushdie nasceu em Bombaim (hoje Mumbai) no dia 19 de junho de 1947; seu livro dramatiza os nascimentos simultâneos da Índia e do herói Saleem Sinai à meia-noite de 15 de agosto daquele ano. Os Filhos da Meia-Noite teve uma pós-vida: romancistas indianos mais jovens, tais como Kiran Desai e Rana Dasgupta, ambos ganhadores do Booker, foram profundamente influenciados pelo romance de Rushdie. "Você está esquecendo de Amit Chaudhari. Amit não consegue passar nem uma semana sem mencionar Os Filhos da Meia-Noite. Acredito que a obra cause grande influência, mesmo sobre os que a odeiam", diz o escritor. Ainda assim, ele não é seu livro mais famoso. Versos Satânicos foi o título que lhe rendeu a fama de romancista problemático mais aclamado do mundo.

A obra foi considerada tão hostil ao Islã que o aiatolá Khomeini chegou a emitir uma fatwa (lei islâmica) em 1988 exigindo a execução de Rushdie. O autor foi vítima de uma tentativa frustrada de assassinato, mas outras pessoas relacionadas ao livro foram assassinadas, como o tradutor japonês, morto a facadas por, de acordo com Rushdie, terroristas iranianos que chegaram ao Japão através da China.

Rushdie faz piadas sobre a fatwa com a seleta audiência na sinagoga em Miami antes de iniciar a leitura de hoje. "Eu não quero ficar zombando do aiatolá Khomeini, mas devo lembrar a todos que só um de nós está vivo. Devemos todos lembrar que a caneta pode ser mais poderosa que a espada. Não mexa com romancistas", diz, com um deboche.

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