
Felipe Hickmann tem ainda seis dias em Curitiba. No próximo domingo (13), viaja para a Irlanda do Norte. Deve enfrentar uma temporada de chuva. Afinal, no país em que vai passar os próximos três anos, chove durante pelo menos 200 dias do ano. Mas ele não teme tanta precipitação atmosférica. Está animado. Vai fazer uma tese de doutorado na Queens University, em Belfast. O seu projeto, música para videogame, foi aprovado e ele ganhou uma bolsa de estudos.
Hickmann tem 26 anos e, apesar da relativa pouca idade, já construiu uma trajetória como músico na capital paranaense. Nasceu em Foz do Iguaçu, onde estudou piano clássico. Em 2001, deixou a casa dos pais em busca de aprimoramente musical. Mudou-se para Curitiba com a finalidade de fazer bacharelado em Música, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Durante o curso, deparou-se com uma situação recorrente e, para ele, inusitada. Quase 99% dos colegas reclavam porque tiveram de brigar, muito, com a família para poder estudar música. Com Hickmann, aconteceu exatamente o contrário.
O pai, Eloi, um advogado, e a mãe, Eliza, uma dentista, foram e ainda são os maiores incentivadores do filho Felipe, no sentido de que ele se dedicasse, e ainda se dedique, integralmente, à música. E foi devido a esse estímulo que ele não teve receio de, sem conhecer nenhuma pessoa, começar, no início desse século 21, uma nova vida em Curitiba.
Mas os conflitos, inevitavelmente, surgiriam na vida de Hickmann. A vida acadêmica acenava com propostas vanguardistas, e a vida real exigia comunicabilidade. Como resolver o problema? O músico Indioney Rodrigues, atualmente residindo em Londres, convidou Hickmann para participar do conjunto vocal Poca Boca que, em 2001 e 2002, produzia música brasileira de vanguarda.
"Comecei a entender que a arte tem a ver com comunicação, expressão e invenção. E devo esse entendimento ao convívio que tive com o Indioney", afirma.
Hickmann divide, e dividirá, pelo menos até o próximo sábado, um "apartamento de artistas", no centro de Curitiba, onde vivem atualmente o tecladista Vinicius Nisi, da banda Nuvens, e Jomar Lima, um cantor que agora também é funcionário público. Hickmann comprou a maior mala que encontrou e deve levar apenas roupas, mas nenhum tênis ou sapato. É que a umidade de Belfast tende a estragar tudo, menos as botas de borracha. Também leva, não dentro da mala, mas na memória, a experiência de ter participado do grupo Fato, desde 2007.
"O Fato tem uma proposta difícil de assimilar, para alguns, mas necessária, que é aliar pesquisa com música contemporânea", diz.
Esses últimos dias em Curitiba também foram aproveitados para finalizar as gravações do projeto Menino dos Cataventos, que faz uma fusão de textos do poeta gaúcho Mario Quintana com uma música experimental. O projeto reuniu, ao lado de Hickmann, que toca piano, os músicos Marjori Crispim (vocal), Mayra Pedrosa (contrabaixo acústico), Luis Bourscheidt (bateria) e Marcelo Olivera (clarineta, flauta e escaleta). "Fizemos 11 músicas incríveis, com linguagem contemporânea e popular", explica.
Daqui para frente, tenta imaginar o que o espera na Irlanda do Norte. Terá de pensar em como fazer música para videogame, gênero em que é preciso levar em conta o aleatório, a eventual reação de um jogador diante das situações de determinado jogo.
Hickmann já teve de recorrer ao kung fu para lidar com a ansiedade e os inúmeros desafios da vida. Durante três anos, viu o sol nascer fazendo katis, que são as sequências de movimentos de luta, mas sem adversário. "O kung fu me ajudou a desenvolver a concentração, que é fundamental para um músico", conta.
Mas ele abandonou o kung fu. Da mesma maneira que interrompeu as muitas aulas que fez para aprender a dançar samba. Teve uma "febre de samba", o que o levava a frequentar todas as noites um bar onde houvesse samba ao vivo. Diz não ter jeito para dançar, mas toca samba. Vai sentir saudade desse passado.
Hickmann foi submetido, na última quinta-feira (3), a uma cirurgia para correção de miopia. Vai em direção do chamado Velho Mundo com a possibilidade de ter um outro olhar, até mesmo simbólico, nessa viagem rumo ao desconhecido. Não sabe, nem poderia saber, o que pode acontecer daqui a três anos, quando concluir a tese de doutorado, mas tem esperança de que o seu destino seja Curitiba, a cidade onde ele se inventou, como músico, artista e pessoa.



