No primeiro álbum das histórias em quadrinhos As Aventuras de Tintim, série criada pelo quadrinista belga George Remi, mais conhecido como Hergé (19071983), o jovem repórter e viajante Tintim, acompanhado de seu fiel cãozinho Milu, vão parar na União Soviética, em pleno período revolucionário.
Publicada em 1929, Tintim no País dos Sovietes inspirada na obra Moscou sans Voiles, de Joseph Douillet, antigo cônsul belga na Rússia trazia os barbudos comunistas no papel de vilões, em uma narrativa que satirizava a propaganda soviética e criticava a violenta polícia secreta russa OGPU, antecessora da KGB. Considerada anticomunista, a obra, durante décadas, foi proibida na Rússia e até hoje não chegou às mãos dos leitores chineses. O próprio Hergé, acusado de ser um colaborador do regime nazista durante e após a ocupação alemã, tirou a HQ de circulação nos anos 1930 (ela só voltaria a ser publicada novamente em 1973, quando se tornou best seller).
Por vezes acusado de racista e colonialista em seus quadrinhos, Hergé deve estar se revirando no túmulo diante do mais novo lançamento da editora gaúcha Deriva: Construindo a Liberdade, uma paródia anarquista dos quadrinhos do desenhista belga, em que o ordeiro e civilizado Tintim assume o papel de um grevista revolucionário.
Publicada originalmente em 1988, nos Estados Unidos, com o título de Breaking Free escrita sob o pseudônimo de J. S. Daniels, autor, até hoje, anônimo a história, livre de direitos autorais, foi traduzida e adaptada pela equipe da editora gaúcha, que deu uma "abrasileirada" na trama.
Após ser envolvido em um esquema de contrabando orquestrado pela dupla de investigadores corruptos Dupond e Dupont, Tintim vira um fugitivo da polícia. Consegue escapar, vagando de cidade em cidade, mas perde seu inseparável amigo Milu. Passados 15 anos, o repórter, já esquecido pela polícia, vem ao Brasil para tentar reconstruir sua vida ao lado de seu velho amigo Capitão Haddock, que também não teve muita sorte na vida: perdeu sua fortuna no jogo e na bebida e agora trabalha como pedreiro em uma construtora brasileira.
Na luta pela sobrevivência diária em um subúrbio, o Tintim de Construindo a Liberdade passa a utilizar as únicas armas que possui contra a sua exploração e a de seus amigos: greve, sabotagem e insurreição. "A história é, na verdade, um manual de como promover uma greve fugindo dos sindicatos", explica Paulo Capra, um dos cabeças da Deriva.Não à toa, em uma das imagens da capa, o personagem aparece segurando um coquetel molotov aceso. Durante a narrativa, o leitor vem a saber ainda que Tintim quase foi preso por furto atividade adotada como estilo de vida e luta anticorporativa e que, apesar de muito politizado, o personagem é dono de uma mentalidade machista: "Essa coisa de libertação da mulher é tudo besteira. É papo de sapatona e mulher peluda de sandália de couro", dispara, para desespero da ala feminina das grevistas. "A história é muito crua. Não é algo que prenda o leitor pela narrativa, como eram as aventuras do personagem escritas por Hergé. Mas o interessante é esse contraste e a mensagem, totalmente deturpada em relação à da obra original", destaca o editor.
Serviço: As Aventuras de Tintin Construindo a Liberdade, de J. S. Daniels. Deriva, 170 págs. Preço médio: R$ 20. O livro pode ser adquirido no site www.deriva.com.br.



