
Quem pertence à geração que iniciou o ensino fundamental nos anos 70, no auge da ditadura militar, cresceu enxergando em d. Pedro I uma figura resoluta, corajosa e cheia de ideais. Um líder que nos teria libertado do jugo de Portugal e fundado a nação brasileira sem hesitação.
No imaginário de muitos, o jovem imperador passou a ter as feições e o porte imponente de Tarcísio Meira, galã das telenovelas escolhido para vivê-lo emIndependência ou Morte, filme do diretor Carlos Coimbra. O longa-metragem, uma superprodução para os padrões da época, foi lançado em 1972, por ocasião das comemorações ao sesquicentenário do Grito do Ipiranga, proferido às margens do discreto riacho localizado nas então cercanias da cidade de São Paulo.
Para o jornalista paranaense Laurentino Gomes, autor de 1822, continuação de 1808, livro lançado em 2008 que se tornou um dos maiores best sellers nacionais, essa imagem unidimensional e idealizada de d. Pedro interessava ao governo militar.
Embora nascido em Portugal, o príncipe e mais tarde imperador do Brasil, era um herói sob medida para os ideais nacionalistas pregados pelo regime. Reto e sem falhas. A não ser, talvez, por sua queda acentuada por belas mulheres. O que não chegava a ser exatamente um defeito aos olhos do governo do general Emílio Garrastazú Medici, então presidente da República.
Mas esse Pedro sem máculas jamais existiu. Assim como o processo que desembocou no tal grito às margens do Ipiranga também não foi tão plácido quanto a historiografia oficial por muito tempo fez os brasileiros acreditar. Na segunda década do século 19, o Brasil era um pais mergulhado em conflitos, assim como a Europa de onde a família real portuguesa fugira 14 anos antes, para escapar das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiram a Península Ibérica em nome de uma França imperial.
"Havia muita divergência no Brasil, tumulto mesmo, no Norte, no Nordeste, no Sul", diz Laurentino. Ninguém parecia se entender a respeito dos rumos que o imenso território da América portuguesa deveria tomar. "Havia monarquistas leais à Coroa Portuguesa, federalistas e republicanos. E até quem sonhasse com um Brasil independente, sob o governo imperial de d. Pedro." Aos 24 anos, o voluntarioso príncipe teve diante de si um dilema tão gigantesco quanto as vastas dimensões de seu futuro reino.
As Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, também frequentemente designadas como Soberano Congresso e conhecidas na historiografia portuguesa como Cortes Constituintes de 1820, foram o primeiro parlamento português no sentido moderno do conceito. Criado na sequência da Revolução Liberal do Porto para elaborar e aprovar uma constituição para Portugal, os trabalhos parlamentares desse órgão ocorreram entre janeiro de 1821 e novembro de 1822. E, para as Cortes, o filho de d. João VI não passava de um rapaz mimado e impulsivo que, ao insistir na ideia de governar o Brasil de forma mais autônoma, agia contra os interesses da metrópole. Queriam que ele e sua família voltassem a Portugal de mala e cuia.
Diante dessa intimação, Pedro teve de escolher entre ceder ou romper de vez com a terra de seus ancestrais. Optou por ficar. A proclamação da Independência veio como decorrência dessa decisão
Jornalismo
Como já havia feito em 1808 obra sobre a vinda da família real portuguesa e seu impacto transformador sobre a civilização brasileira, com 600 mil cópias vendidas no Brasil , Laurentino vence em 1822 um árduo desafio. O de explicar ao grande público, e não apenas aos iniciados em História, o intrincado contexto histórico no qual a Independência do Brasil foi proclamada. Faz isso com prosa envolvente e clara, provida de elegância e, sobretudo, de afiada perspicácia jornalística. Ele consegue criar entre fatos do passado e do presente conexões (leia quadro nesta página) que trazem o leitor para dentro da narrativa, que jamais se torna maçante.
"A Independência, ao contrário do que se acreditava décadas atrás, não foi resultado de uma negociação pacífica entre d. Pedro e seu pai, d. João VI. O país estava a um passo da guerra civil. Havia revoltas de escravos, movimentos separatistas. Conflitos pipocavam por todo lado", conta Laurentino.
Diante desse quadro, d. Pedro foi aconselhado por José Bonifácio de Andrade e Silva, que viria a ser ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros entre 1822 e 1823, a proclamar a Independência do Brasil e a optar pelo regime da monarquia constitucional. Nesse processo, a esposa d. Pedro, a princesa Maria Leopoldina, futura imperatriz do Brasil, teve papel fundamental, agindo em parceria afinada com José Bonifácio.
Embora não seja didático, 1822 tem um roteiro que facilita muito o entendimento da evolução dos acontecimentos históricos. Laurentino cria capítulos para desconstruir, por exemplo, o lendário Grito do Ipiranga, que teria sido bem menos espetacular do que o mito criado seu redor. D. Pedro não montava um garanhão, mas uma mula animal mais adequado ao percurso íngreme entre o litoral paulista e a capital da província. Para piorar, o jovem príncipe tinha de parar a cada meia-hora ao longo do caminho em virtude de uma aguda diarreia.
Personagens-chave como d. Pedro, Leopoldina e José Bonifácio ganham saborosos capítulos individuais, nos quais Laurentino se revela excelente contador de histórias. Ganha vida a intempestiva personalidade do futuro imperador, cuja personalidade era diametralmente oposta a do pai, d. João VI, um homem ilustrado, porém hesitante, sedentário, glutão e pouco asseado. Laurentino o descreve como atlético, hiperativo e muito vaidoso, sempre de banho tomado e (quase sempre) bem-vestido. Também conta que sofria de epilepsia, o que o fragilizava.
Já o capítulo dedicado a d. Leopoldina é de uma tristeza infinita. O autor narra em detalhes como a romântica, culta e discreta princesa austríaca foi do céu ao inferno. Em um primeiro momento, apaixonada por Pedro e encantada pela exuberância dos trópicos. Depois, desiludida. Mas sempre disposta a defender o Brasil e os brasileiros.
O texto referente a José Bonifácio é o mais revelador. Talvez por tratar de um vulto que entrou para a História como um personagem sisudo e bem menos humanizado. Das páginas de 1822, surge um homem erudito e um articulador político habilíssimo. E, também, um sujeito que dançava lundu sobre mesas de tavernas, era espadachim habilidoso e amava as mulheres. Um traço em comum com seu príncipe. GGGG
Serviço: 1822. Laurentino Gomes. Nova Fronteira. 372 págs. R$ 44,90.





