
Embora tenha nascido e crescido num balneário no sul de Nova Jersey, jamais aprendi a nadar ou participei de uma pescaria e tampouco, desde que me mudei para Manhattan, em meados dos anos 50, me aventurei a um passeio para observar a cidade a partir da água, num dos trajetos da Linha Circular que partem do Píer 83, no Rio Hudson, à altura da Rua 42.
Minha aversão à água é, em parte, hereditária. Remonta a meu pai, nascido na Itália e criado numa vila montanhosa de onde se via, lá embaixo, o pântano infestado de malária e, a distância, o Mar Tirreno na Antiguidade, rota de barcos lotados de invasores hostis que ali aportavam, além de berço mitológico de um homérico monstro dos mares com apetite insaciável por carne humana.
Em 1922, aos 17 anos, esse pai que tinha pânico e trauma de água viajou sozinho durante dez dias num navio de imigrantes, até finalmente aportar no Novo Mundo os pesadelos náuticos todos na bagagem. Mais tarde ele passou adiante esses pesadelos na forma de histórias que, na hora de dormir, contavam com o intuito de me instruir sobre os medos e privações que tivera de passar na busca por uma vida melhor na América, ao mesmo tempo que deixava implícito que eu dificilmente teria do que reclamar alguma vez na vida e sobre o que quer que fosse.
Durante toda a infância em Ocean City, Nova Jersey, uma comunidade construída sobre a estreita faixa de terra de uma ilha de contenção e situada entre a baía de Great Egg e o Oceano Atlântico, jamais me queixei da relação de temor que meu pai mantinha com aquelas águas à nossa volta. Suas precauções eram justificadas, me parecia, pois, no verão, banhistas eram com frequência arrastados para a morte pelas fortes correntes oceânicas; uma vez, no outono, as ondas chegaram às dunas e causaram enchentes na maior parte de nossa comunidade, atingindo inclusive o primeiro dos dois pisos do imóvel que meus pais ocupavam bem acima do nível do mar, em pleno quarteirão do comércio.
Em quase 50 anos como escritor, não me lembro de alguma vez ter sugerido uma pauta em que fosse me arriscar a molhar os pés. Mas, quando um amigo editor me ouviu dizer que nunca havia circunavegado a cidade num daqueles barcos, sugeriu que era urgente me colocar a bordo da Linha Circular para ver o que eu achava.
Escolhi uma manhã ensolarada em que o Hudson estava muito calmo e, depois de comprar meu bilhete de idoso a 29 dólares (adultos pagam 34 e menores, 21), me vi no meio de aproximadamente 400 passageiros num percurso de três horas a bordo de um navio branco com dois deques, 160 pés de comprimento e o nome de Manhattan.
O capitão, Ed Weber, era um sujeito baixo e parrudo de 65 anos, morador de Long Island. Exibia um sorriso reconfortante e disposição de anfitrião. Depois de me apresentar, sentei atrás dele enquanto passávamos pelo Javits Center e por uma gigantesca rede protetora, cortesia do Chelsea Piers para evitar que as bolas de golfe de sua área de treinamento de tacadas acabem por atravancar o canal. O capitão Weber mantinha as mãos no timão e os olhos fixos à frente enquanto respondia minhas perguntas com certa reticência, que atribuí à sua modéstia.
À medida que avançávamos para o Sul, na direção da Estátua da Liberdade, o capitão, comandante da Linha Circular há mais de 35 anos, revelou jamais ter colidido contra a base de uma ponte nem trombado com uma barcaça, um rebocador, uma balsa, uma lancha dos bombeiros, um barco-lixeiro, uma jamanta aquática, um transatlântico, uma patrulha da Guarda Costeira, um iate ou qualquer das outras embarcações com as quais divide aquele pedaço de rio.
Certa vez, no entanto, foi obrigado a engolir o líquido barrento e azulado do Hudson, cuja profundidade varia de 4,5 metros, perto das docas da Linha Circular, a 15 metros no entorno da Estátua da Liberdade, 27,5 metros na altura de Hell Gate e 55 metros embaixo da Ponte George Washington. Quando uma das mulheres que vendem lanches e bebidas a bordo derrubou no rio uma bolsa com a féria do dia, há alguns anos, o capitão Weber enfiou o equipamento de mergulho e desceu para recuperar o objeto perdido. É preciso reproduzir com cuidado sua descrição sobre que gosto tinha a água. Um drinque à base de diesel, com sabor de esgoto.
Nosso guia nesse dia era John Keatts, 70 anos e 1,80 metro de altura, natural do Meio-Oeste e formado em engenharia mecânica. Depois de ter trabalhado em submarinos na Marinha, o sr. Keatts aportou em Nova York com sua voz melíflua e arrumou trabalho em comerciais e atuando em papéis secundários em musicais, no teatro de revista e na televisão. Como se parecia com o ator Jerry Orbach com seus grandes olhos negros, rosto comprido e postura arqueada ao caminhar, o sr. Keatts fez as vezes de dublê do personagem de Orbach em Law & Order, Lennie Briscoe. Começou na Linha Circular nos anos 80 para complementar a renda.
No convés, enquanto o navio avança a uma velocidade de aproximadamente 30 quilômetros por hora, o sr. Keatts está de pé em meio à multidão com um microfone na mão. Usa calças escuras, sapatos flexíveis de couro com sola de borracha e uma camisa branca com ombreiras negras sobre as quais se destacam duas listras douradas.
"O Lincoln Tunnel passa 30 metros abaixo de onde estamos", ele diz.
Isso me levou a pensar num homem que entrevistei em meados dos anos 60, cuja tarefa era fazer a limpeza dos azulejos que recobrem as paredes dos três dutos do Lincoln Tunnel cada um deles com 2,5 milhões de azulejos.
De madrugada, ele e um assistente conduziam dois caminhões em fila, túnel adentro um dos veículos carregado com aproximadamente 5,7 mil litros de sabão líquido, que era esguichado nas paredes, o outro equipado com escovas cujas enormes cerdas de nylon esfregavam as paredes ensaboadas. Depois que assisti ao trabalho tedioso que faziam, o chefe dos dois inspecionou orgulhoso o brilho dos azulejos e disse: "Um túnel é algo belo, se a gente souber apreciar".
Passamos pelas docas do West Side e pelos arranha-céus de Lower Manhattan, seguindo na direção de Ellis Island. "Samuel Ellis é bastante conhecido nesta cidade", o sr. Keatts está dizendo. "Durante a Revolução, ele continuou a apoiar o rei da Inglaterra e, com o fim dela, também seu reinado sobre a ilha se acabou. Seus negócios foram fechados. Aprendeu a lição."
A última vez que havia visto Ellis Island foi em 1990, quando foi reaberta como museu e acompanhei meu pai, então com 85 anos, a uma cerimônia em homenagem aos imigrantes. Ele aproveitou a ocasião para me lembrar do pavor que sentira durante a travessia do oceano que o trouxera até ali e, enquanto falava, reparei que nem uma única vez olhou para a água. Na hora da homenagem, assumiu seu posto no palco e se apresentou a um homem que estava a seu lado.
"Sou Joseph Talese", disse meu pai, estendendo a mão ao outro.
"Sou Anthony Scalia", o homem respondeu, correspondendo ao aperto de mão.
"Existe um juiz da Suprema Corte com esse mesmo nome", meu pai falou, ao que o outro retrucou: "Sim, sou eu mesmo".
"Nossa, fico surpreso", disse meu pai.
"Eu também", respondeu o juiz Scalia.
O navio de passeio da Linha Circular fez uma parada nas águas calmas a cerca de 100 metros da Estátua da Liberdade. A embarcação parecia estar levemente inclinada pelo peso de tantos passageiros apoiados na amurada que proporcionava a melhor vista do monumento. Com suas dezenas de câmeras a postos manuais, digitais, filmadoras e celulares aquelas pessoas vindas da China, da Dinamarca, do Equador, da França, da Holanda, das Filipinas; de Tulsa, Trenton e Dingmans Ferry, na Pensilvânia, passaram a fotografar e filmar aquela senhora que conheciam apenas de cartões-postais.
"Ela é bonitona", disse Chen Yan, 38 anos, de Xangai.
"É maravilhosa", acrescentou Christine Leusmann, de Hamburgo.
"É maior do que eu pensava", comentou a inglesa Eileen Woolley, professora aposentada que vive no condado de Derbyshire. "Na verdade, é muito linda, se o ajuda que eu diga isso."
Dez minutos depois, passando debaixo da Ponte do Brooklyn rumo ao norte e ao East River, o sr. Keatts nos informa que alguém que ficasse parado sobre a ponte em 1883 "estaria no ponto mais alto de uma construção humana em toda a América do Norte". Chamando-nos a atenção para o lado direito, ele observa que 5,4 mil navios foram construídos ou consertados no Estaleiro da Marinha no Brooklyn, durante os quatro anos em que os Estados Unidos combateram na Segunda Guerra Mundial. Agora à esquerda: "Ali é a sede das Nações Unidas. Em 1950, quando foi inaugurada, contava 51 nações. Hoje, são 192". De novo à direita, apontando um letreiro da Pepsi-Cola: "A empresa inventou uma coisa extraordinária no Queens: o neon!".
"O pessoal costumava vir até aqui para fotografar nunca tinham visto nada parecido", continua o sr. Keatts. "E Times Square então entrou na onda. É mais barato do que usar lâmpadas elétricas neon!"
Cruzamos por baixo da Ponte Queensboro, que, quando cheguei a Nova York, exibia mastros de bandeiras de mais de 20 metros no topo de suas quatro torres, elas próprias erguendo-se acima dos 100 metros; os mastros foram removidos em 1960 depois de denúncias de falta de manutenção. Lamentei ao me dar conta de que mais da metade do percurso já se fora, ainda mais porque tinha me sentido surpreendentemente relaxado sobre as águas e estava apreciando, em particular, aquela paisagem rústica e oprimida de Nova York a que a voz amplificada de John Keatts dispensava pouca ou nenhuma atenção.
Por exemplo, a visão de uma barcaça carregada com mais de 30 automóveis de ferro-velho que o capitão Weber suspeitou que tivessem sido roubados e desovados no Rio Harlem, depois de depenados de tudo que pudesse ser vendido no eBay: rodas especiais, aparelhos de som, sistemas eletrônicos de localização. Um mergulhador nova-iorquino que entrevistei certa vez, especializado em buscas no fundo do rio, me contou que os veículos jogados na água quase sempre repousam de cabeça para baixo no lodaçal lá embaixo. Isso porque, ele me explicou, o peso do motor do carro o faz descer de ponta e, ao tocar o fundo, pender e aterrissar sobre o próprio teto. Também me disse que era capaz de estimar há quanto tempo o carro estava ali embaixo apenas correndo as mãos pela carcaça e contando o número de crustáceos grudados nela.
No topo de um penhasco às margens do Rio Harlem, do lado de Manhattan, ergue-se a Highbridge Water Tower, com quase 60 metros de altura, que se parece com um minarete medieval e abrigou um carrilhão cujos sinos ecoavam diariamente uma melodia, até serem destruídos por um incêndio criminoso em 1984. Do outro lado do rio, na altura do estádio dos Yankees (na verdade, estádios, o velho e o novo), dois meninos atiravam pedras contra nossa embarcação, sem conseguir acertar o alvo o que, no entanto, levou o capitão Weber a responder a má-criação com sonoros apitos da buzina do navio.
Viam-se fileiras de vagões de metrô empoeirados sobre trilhos tomados de mato e armazéns frequentados por cães vadios e protegidos por cercas de arame farpado. Num frágil píer de madeira, um velho com seu chapéu de palha segurava uma vara de pescar com a linha mergulhada na água barrenta.
"Que tipo de peixe tem por aqui?", perguntei ao capitão Weber.
"Linguados, bailadeiras", ele respondeu.
"Dá para comer?", eu quis saber.
"Até dá", ele disse.
"O senhor comeria?", perguntei.
"Não", ele respondeu.
"À direita, havia uma comunidade de comerciantes holandeses que insistiu em ficar aqui, apesar do demônio", informa John Keatts, pelo sistema de som, na altura de Spuyten Duyvel Creek. "Para eles, o diabo eram os poços de enxofre, piscinas borbulhantes que cheiravam como o inferno."
Adiante estava a Ponte George Washington. Faz uns 45 anos, entrevistei O.H. Ammann, o engenheiro suíço que supervisionou a construção da ponte, concluída em 1931. O sr. Ammann, que tinha 85 anos quando nos encontramos, construiu muitas das pontes de Nova York Whitestone, Throgs Neck, Triborough, a pequena ponte verde para pedestres que cruza o East River levando a Wards Island e, acima de tudo, a Ponte Verrazano-Narrows e conseguia enxergar todas elas por um telescópio instalado em seu apartamento na esquina da Rua 76 com a Avenida Madison.
Mas a que mais o orgulhava era a George Washington. "Aquela foi a primogênita dele", explicou a esposa, Klary, "e um parto difícil".
Quando as obras da George Washington começaram, em 1927, a cidade vivia sob o signo da riqueza e do otimismo foi a era que produziu o Empire State Buiding, o Chrysler Building e o prédio do hotel Waldorf-Astoria; o Holland Tunnel tinha acabado de ser concluído.
Mas, em 1931, quando a ponte foi inaugurada às custas das vidas de 12 operários (nove mortos a mais do que os da Verrazano, terminada em 1964) , Nova York já era a cidade das filas por pão, dos vendedores de maçãs e dos arranha-céus meio às moscas. Embora a ponte tivesse sido projetada com dois deques pelo sr. Ammann, a economia em frangalhos só permitiu arcar com os custos de um deles (o segundo não pôde ser concluído até 1962). O orçamento apertado, no entanto, o favoreceu numa coisa: foi mais fácil recusar a sugestão, da qual não gostara, de recobrir a estrutura de aço com alvenaria.
E toda vez que ele e a mulher passavam pela ponte, nos anos seguintes, faziam um aceno cordial com a cabeça. O sr. Ammann me contou isso durante nossa conversa em seu apartamento de cobertura, 32 andares acima do Carlyle Hotel e bem longe da água.
O jornalista Gay Talese, de 77 anos, é autor de 11 livros, entre eles O Reino e o Poder, Fama e Anonimato e Vida de Escritor, os três publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
Tradução de Christian Schwartz.



